O GLOBO
A cama onde morreu Getúlio é baixa e acanhada para os padrões atuais. O chuveiro, pequeno. Entrei no quarto dele, pensei no mistério daquela morte, olhei longamente o revólver, o pijama. Depois, andei pela exposição sobre a história da República. O começo tumultuado e militarizado, depois, jogo de cúpula, ditaduras. Breves respiros democráticos; mesmo assim, uma história de avanços.
Passei algumas horas da última quinta-feira no Palácio do Catete, sede do governo de 1896 a 1960, que viu esperanças e descaminhos da República e, ainda hoje, aprisiona o estupor do suicídio de um presidente.
Os belos espelhos do Salão Nobre criam a ilusão de ser maior a sala onde os presidentes tomavam posse. Desviando dos espelhos, para evitar o reflexo, pusemos três cadeiras para gravar o programa Espaço Aberto sobre a história do voto no Brasil e os dilemas atuais: que reforma política? Voto obrigatório ou não? Ficha Limpa ainda que tarde.
O cientista político Jairo Nicolau e o jurista Luis Roberto Barroso concordam na visão otimista: o Brasil avançou, apesar dos sustos e erros, ampliando sempre o universo dos votantes: no Império, votavam apenas os ricos. Era necessário comprovar rendas e propriedades.
A idade mínima era 25 anos. Antes, só os homens.
As mulheres tiveram direito de voto em 1932, um pouco antes do único período da história do Brasil em que foi suspenso integralmente o direito de voto, na ditadura getulista de 1937 a 1945.
Elas só puderam ter o direito amplo garantido no fim da segunda guerra. A democracia liberal de 1945 a 1964 foi sempre ameaçada pelas inquietações dos quartéis, as conspirações e denúncias de fraudes. Aí veio a longa noite dos militares no poder, em que foi suspenso o voto para presidente, governador, prefeito das grandes cidades e, em dado momento, para um terço do Senado. Na redemocratização, os votantes passaram a incluir os analfabetos e os jovens de 16 e 17 anos, uma das poucas democracias do mundo que permitem o voto a esta faixa etária, explicou Jairo. Desde a memorável campanha das “Diretas Já”, o Brasil já fez cinco eleições para presidente pelo voto direto. A de hoje será a sexta e para ela estão aptos a votar 136 milhões de brasileiros.
É a democracia estabilizada finalmente? Barroso diz que é uma democracia em construção. Antes, durante e depois da gravação conversamos sobre o fascinante tema do voto. Os entrevistados me lembraram um fato: já não se fala de fraude. O assunto, tão presente na história da República, hoje se limita a denúncias locais.
Mesmo assim, a democracia está longe da perfeição.
Essa campanha deixou sombras. Uma foi a maneira desmedida com que o chefe da nação se instalou nos palanques, ofendendo adversários políticos, em campanha aberta, confundindo de forma intolerável os papéis de presidente com o de chefe de campanha.
Tomara que nunca depois um chefe de Estado confunda tanto o seu papel, abuse tanto do seu poder, use a máquina de forma tão descarada. Se o comportamento do presidente Lula, em campanha, for um precedente seguido por outros, a democracia brasileira vai retroceder.
O Supremo Tribunal Federal lançou outra sombra sobre o processo eleitoral ao não ser capaz de decidir sobre o caso Roriz. A República esperava do Supremo uma decisão. Era sim ou não. Não pode ser um talvez.
Esse talvez levará a cassar o voto de cidadãos a posteriori. Se a falta de nomeação de um ministro criava o risco matemático do impasse, era preciso superar a indecisão. Havia caminho.
Bastava interpretar que, se o entendimento majoritário era que a Lei da Ficha Limpa não é inconstitucional, não se podia acolher o reclamo do então candidato a governador do Distrito Federal. Ele, no dia seguinte, fez a Justiça de boba com a escolha de um avatar para representá-lo.
Quando o STF decidir, os cidadãos terão votado. Hoje, vamos às urnas sem saber que candidatos podem ou não ser votados. Isso distorce o processo.
O que me aflige mais na história recente do país é ver jovens desanimados com a democracia, diante da avalanche de escândalos de corrupção que despencou sobre nós nos últimos anos. A Ficha Limpa foi o começo da virada. Não se defende aqui que o Supremo decida pelo clamor das ruas. Mas pelo caminho do Direito, há como a Justiça sinalizar a estrada que dará ao cidadão a segurança de uma representação de mais qualidade.
A reforma política está sempre nos debates e é, como disse Jairo Nicolau, aquilo que todos são a favor, mas cada um está falando de uma reforma diferente.
Os dois defendem o voto obrigatório, mas no programa, houve divergências.
Voto em lista fechada é a preferência de Barroso.
Nicolau acha que se pode dar ao eleitor a chance de escolher se prefere votar na lista do partido ou no nome.
Ele lembra que o Brasil, desde que se entende por país, vota no nome, e não em lista. Seria a mudança em um processo que tem quase 200 anos. Financiamento público exclusivo de campanha? Ninguém garante que isso acabará com o tormento do caixa dois.
Há muito a fazer e a discutir, mas hoje é o dia de carregar um documento com foto, ir à sua seção eleitoral, digitar na urna, de eficiente tecnologia nacional, os números das pessoas nas quais você confia para deputado estadual, federal, governador, dois senadores e para a Presidência. A democracia não está pronta, mas avançamos muito na sua construção. Riscos existem, mas andando pelo Catete entendi que fantasmas e medos que assombraram a República, hoje estão apenas na História.
Entrevista:O Estado inteligente
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