- O Estado de S.Paulo
Não faz muito tempo, acompanhando um candidato a prefeito de São Paulo pela periferia da capital, um jornalista, ao ver um galo disparando um cocoricó, perguntou de chofre ao demagogo se ele seria capaz de fazer aquela ave cantar. A resposta veio na ponta da afiada língua: "Mas é claro." Em idos que a névoa do tempo encobre, Temístocles, o altivo ateniense, também conhecido por escolher entre dois pretendentes à mão de sua filha o mais virtuoso, em vez do mais rico, foi convidado numa festa a tocar cítara. O general declinou gentilmente do convite: "Não sei tocar música, o que sei é fazer de uma pequena vila uma grande cidade." Hoje, cerca de 135 milhões de brasileiros são convocados a comparecer às urnas e depositar seu voto em candidatos de todos os naipes: doidivanas, oportunistas, tocadores de trombone, clarineta e cítara e, pior, até imitadores de galos e galinhas. O rol de demagógicos parece ser maior que a lista dos sérios. Quem se deu ao sacrifício de olhar para o desfile de caras, bocas e onomatopeias nos programas dos candidatos às eleições proporcionais registrou o mais estapafúrdio espetáculo da história eleitoral.
Nem mesmo incontidas gargalhadas conseguiram disfarçar o constrangimento que o destampatório provocou em eleitores que ainda põem crença na política como ferramenta de transformação social. Mas ainda é possível ver nascer uma flor no pântano. Parcelas da sociedade brasileira enxergam uma pequena tocha que, mesmo bruxuleante, deixa ver perfis talhados por boa-fé e motivados a trilhar a via política defendendo a dignidade tão bem expressa por Temístocles no gesto em que mostra a diferença entre um estadista, que se submete ao crivo da História, e um populista, inebriado por aplausos das gerais. Neste dia em que se processa o evento de maior significação dos sistemas democráticos - momento em que os cidadãos escolhem livremente seus representantes -, é de esperar que eleitoras e eleitores cumpram seu direito com zelo e sabedoria, sob o axioma de que o voto é o tijolo mais sólido do edifício da cidadania.
Se tal consciência não adquire amplitude, em razão do grau de educação política do maior contingente populacional, classes e setores esclarecidos imbuem-se do dever de puxar a locomotiva de consciência cívica e exercer seu papel de fomentadores do escopo e dos quadros mais necessários ao desenvolvimento político da Nação. Não se podem omitir diante de mazelas que se acumulam nos desvãos das instituições, patrocinadas por algumas dúzias de senhores que teimam em conservar no gelo as sobras bolorentas da velha política. Nem devem execrar a moldura cultural que abriga nosso povo. Gogol ensinava: "Não é por culpa do espelho que as pessoas têm uma cara errada." O espelho apenas retrata a feição patrimonialista da administração pública. Feição que, periodicamente, passa por um exercício de lapidação, quando milhões de eleitores são chamados a redesenhar a paisagem política, selecionando os atores que frequentarão os palcos institucionais. Infelizmente, esta periódica tarefa mais se assemelha à estrada infinita, sem início nem fim, que encalacrou Zaratustra, o mestre do eterno retorno, cuja angústia era não saber se estava andando para a frente ou para trás. Não conservamos a sensação de que, a cada pleito, contemplamos a mesma velha e desbotada roupa? Ou será que, na esfera política, teremos de sofrer o castigo a que Sísifo foi condenado pelos deuses, o de tentar carregar nos ombros, por toda a eternidade, a pedra ao topo da montanha?
Esta reflexão sobre a corrente da repetição infinita se faz providencial neste dia que, por excelência, é considerado o mais importante da agenda da cidadania. Rememorar o valor do voto é argumentar que a escolha irrefletida de um representante, seja para que instância for, não ajuda um país a se transformar em Pátria e aproximar o Estado da Nação. Pátria é sincronismo de espíritos e de corações, é comunhão de esperanças, de anelos coletivos, berço de valores e tradições, do qual se devem orgulhar seus filhos. Estado é uma entidade técnico-jurídico-institucional, que vive sob pressão de conflitos e divisão de interesses. Diminuir a distância entre Estado e Nação, eis a missão basilar da política. Missão que se efetiva quando os representantes escolhidos pelo povo conseguem elevar a política ao altar em que foi plasmada e onde nasceu o ideário de defesa e bem-estar da polis. É triste constatar que a política virou profissão, abrindo caminho para legiões de oportunistas que multiplicam teatros mambembes por todos os cantos, alguns querendo iludir as massas com piruetas e truques, travestindo-se de palhaços, fantoches e bufões de antessalas palacianas.
Muitos hão de perguntar: não há quadros nobres e de caráter na política brasileira? Sim. Há grandes atores, perfis sérios. Infelizmente, por um desses efeitos mágicos que a alquimia do Estado-espetáculo consegue engendrar, não alcançam a visibilidade dos conjuntos alçados às luzes dos holofotes. Alguns ainda se salvam graças à fidelidade de um eleitorado que não se encanta com a mediocridade dos mercadores. Aos eleitores fica a sugestão de achar candidatos com ideais e nobreza no meio de espíritos obscuros e pusilânimes. Que se encontrem perfis verdadeiramente sintonizados com as demandas da população. Sintonia que não deve exprimir mera distribuição física de benefícios, mas efetivo compromisso com políticas estruturantes. Urge ter cuidado com quem brande a espada do conflito de classes, sob o bolorento discurso de tirar de uns para dar a outros. Lembremos a lição de Lincoln: "Não fortalecerás os fracos enfraquecendo os fortes, não ajudarás o assalariado se arruinares aquele que paga, não ajudarás os pobres se eliminares os ricos." A Pátria carece de paz e harmonia.
Um voto digno para todos.
Entrevista:O Estado inteligente
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