Em 1974, Portugal estava dividido entre os que já tinham se esquecido da liberdade e os que não a tinham conhecido
- O Globo
Estou voltando a Portugal 40 anos depois. Já vim outras vezes, mas esta é
especial, porque foi para as comemorações da Revolução dos Cravos, uma
de minhas coberturas jornalísticas mais emocionantes. Escrevi então que
desembarcara em Lisboa “em meio a uma saudável confusão que lembrava
carnaval, celebração de vitória esportiva e comício político — uma festa
cívica como Portugal não via há quase 50 anos e com a qual o Brasil
sonhava há dez”. De fato, um mês antes, completávamos uma década de
golpe militar. A explosão de alegria dos lisboetas reencontrando o
prazer da rua era um “incrível espetáculo para quem chegava de fora. Sem
qualquer objetivo definido, eles pulavam, cantavam, corriam e,
sobretudo, falavam. Era como se tivessem descoberto a própria voz”, pois
o país estava dividido entre os que já tinham se esquecido da liberdade
e os que não a tinham conhecido.
Contagiado pela euforia daquele povo que de repente se embriagava de
liberdade, eu me sentia como se aquela conquista fosse um prenúncio. Era
como se estivesse chegando a hora de derrubarmos também a nossa
ditadura. Glauber Rocha, que estava na Itália ainda coberto de lesões
morais, foi encontrar-se comigo em Lisboa. No mês anterior ele me dera
uma entrevista elogiando Geisel, chamando o general Golbery de “gênio” e
afirmando que os militares eram “os legítimos representantes do povo”.
Como consequência, sofrera um linchamento simbólico no Brasil e na
Europa — era um traidor, vendido à ditadura.
Filmando as festas do 1o de Maio, ele parecia estar indo à forra. Seus
detratores iriam ver que ele tinha razão. Com uma câmera emprestada,
registrava aqueles acontecimentos como que se preparando para em breve
fazer o mesmo no Brasil. O diretor de “Deus e o Diabo na terra do sol”
morreu sem ver a liberdade, que de resto não irrompeu aqui da mesma
forma intempestiva, mas a conta-gotas. A democracia levou mais uma
década para chegar, e chegou cheia de cuidados, como que pedindo
licença. Chico Buarque e Ruy Guerra haviam cantado com ironia em “Fado
tropical” que o Brasil iria ser um imenso Portugal em matéria de atraso
político. De repente, o pesadelo virara sonho, e passamos a querer ser
de fato um imenso Portugal pela lição que estávamos recebendo.
Hoje, o país enfrenta uma séria crise econômica, com desemprego, queda
de salários e corte de aposentadorias. A austeridade imposta pela Troika
(FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), em troca de
assistência financeira, está provocando uma insatisfação generalizada.
Mas, apesar disso, ditadura nunca mais, espera-se.