Estadão
Por alguns segundos meu olhar farejou aquele mar de telhados, ávido como num jogo dos sete erros, até achar o que buscava. E aí, também como no jogo, ficou quase impossível ver outra coisa na paisagem em preto e branco: como pude não localizar de cara a nossa casa, inconfundível, a maior do quarteirão, se dava para ver até o flamboyant plantado por meus pais quando lá chegamos, em abril de 1947, o já enorme flamboyant expansionista cujos galhos haveriam de estender sua sombra até quase o outro lado da rua?
Saciado, o olhar pode agora passear pelas imediações, e cada reencontro é uma alegria. Na mesma quadra, para começar, convivendo ainda com espaços vazios, reconheço as casas do vovô Santos, dos tios Fernando e João Antônio, do dr. Euler, do dr. White Lírio da Silva - para a molecada das vizinhanças, dr. Branquinho da Silva. A residência dos Cardellini, cuja nacionalidade italiana viera tornar menos unânime a brasileirice do nosso bairro, quebrada também pelo suíço Georges Pavie, o iugoslavo Jerko Ledic, o turco (ou já seria libanês?) Bechara do armazém e por um alemão impronunciável.
Volto à foto aérea, feita em 1955, e me pergunto se na rua de baixo já se instalou a família búlgaro-mineira de que faz parte uma dentucinha de óculos, a Dilminha, sobrenome Rousseff, que no começo dos anos 60 fará parte da nossa turma de bairro. Num tempo em que todo mundo morava em casa (não há na imagem um só prédio de apartamentos), a chegada de um novo morador, estrangeiro ou não, era um acontecimento. As mães de família se apressavam em visitar os recém-chegados, não raro em revoada e munidas, qual Reis Magos, de pratinhos com alguma guloseima. Não se tratava, claro, de hospitalidade em estado puro; as boas-vindas eram ocasião também, ou sobretudo, para xeretar as armas & bagagens dos forasteiros.
Entrava-se na casa dos outros, ainda, para as novenas, quando o oratório da santa itinerante peregrinava de lar em lar. As famílias eram, de modo geral, "boas famílias" - categoria em que por certo não entrava um casal da nossa rua que, soube-se logo, não se casara nos conformes. Não convinha ter contato, talvez contagioso, com esse par juntado, amasiado, amancebado - tudo rima para pecado. A mulher, então, cujo mau comportamento se estampava até no excesso de maquiagem, essa nem pintada!
A foto que tenho nas mãos informa que no ano de 1955 ainda não se erguera a igreja do Carmo, em cujos confessionários irei mais tarde despejar minha caçamba semanal de malfeitos quase nunca veniais, sempre os mesmos, fazer o quê?, a tal ponto que o confessor, mal me reconhecia, já vinha com a pergunta: sozinho ou acompanhado? O mesmo já acontecia na igrejinha de Santa Rita, espetada no cocuruto do morro onde morávamos. O pároco, padre Eymard, com seu álibi de "neurótico de guerra" - pois acompanhara nossas tropas na campanha da Itália -, era biruta o bastante para interromper a missa, ainda que fosse no momento da Consagração, a hóstia a meio caminho das alturas, hoc est enim corpus meum, para catar atrás do altar uma vassoura ali deixada para tal finalidade e com ela pôr para correr o cachorro que tivesse confundido a Casa de Deus com a Arca de Noé. Nesses casos, de nada adiantava o padre Eymard ter pendurado na entrada a placa formidanda: "Homens sem paletó, crianças que choram e cachorros nesta igreja: NÃO!"
Depois de muito vadiar pela fotografia, meu olhar à nossa casa torna, e acende em mim a vontade de saber: o que acontece lá dentro no instante em que passa o aviãozinho com a câmera? Ferreira Gullar viveu experiência semelhante e fez de sua curiosidade um poema. Limito-me a imaginar em prosa que boa coisa não estarei fazendo naquele início de puberdade. Culpa de meus pais, que ainda não compraram as obras completas de Machado de Assis na edição da Jackson que até hoje me acompanha. Autodidata também em trabalhos manuais, é possível, é provável que eu esteja entregue a uma atividade da qual cheguei a me considerar o inventor. Ouço ainda o riso escarninho do mais sabido João Batista, entre baforadas de seu precoce mata-ratos, quando, orgulhoso, lhe segredei a descoberta. Pouco importa. Pioneiro ou não, assunto não me faltará no domingo, quando das entranhas do confessionário vier a indagação de sempre: sozinho ou acompanhado?
Saciado, o olhar pode agora passear pelas imediações, e cada reencontro é uma alegria. Na mesma quadra, para começar, convivendo ainda com espaços vazios, reconheço as casas do vovô Santos, dos tios Fernando e João Antônio, do dr. Euler, do dr. White Lírio da Silva - para a molecada das vizinhanças, dr. Branquinho da Silva. A residência dos Cardellini, cuja nacionalidade italiana viera tornar menos unânime a brasileirice do nosso bairro, quebrada também pelo suíço Georges Pavie, o iugoslavo Jerko Ledic, o turco (ou já seria libanês?) Bechara do armazém e por um alemão impronunciável.
Volto à foto aérea, feita em 1955, e me pergunto se na rua de baixo já se instalou a família búlgaro-mineira de que faz parte uma dentucinha de óculos, a Dilminha, sobrenome Rousseff, que no começo dos anos 60 fará parte da nossa turma de bairro. Num tempo em que todo mundo morava em casa (não há na imagem um só prédio de apartamentos), a chegada de um novo morador, estrangeiro ou não, era um acontecimento. As mães de família se apressavam em visitar os recém-chegados, não raro em revoada e munidas, qual Reis Magos, de pratinhos com alguma guloseima. Não se tratava, claro, de hospitalidade em estado puro; as boas-vindas eram ocasião também, ou sobretudo, para xeretar as armas & bagagens dos forasteiros.
Entrava-se na casa dos outros, ainda, para as novenas, quando o oratório da santa itinerante peregrinava de lar em lar. As famílias eram, de modo geral, "boas famílias" - categoria em que por certo não entrava um casal da nossa rua que, soube-se logo, não se casara nos conformes. Não convinha ter contato, talvez contagioso, com esse par juntado, amasiado, amancebado - tudo rima para pecado. A mulher, então, cujo mau comportamento se estampava até no excesso de maquiagem, essa nem pintada!
A foto que tenho nas mãos informa que no ano de 1955 ainda não se erguera a igreja do Carmo, em cujos confessionários irei mais tarde despejar minha caçamba semanal de malfeitos quase nunca veniais, sempre os mesmos, fazer o quê?, a tal ponto que o confessor, mal me reconhecia, já vinha com a pergunta: sozinho ou acompanhado? O mesmo já acontecia na igrejinha de Santa Rita, espetada no cocuruto do morro onde morávamos. O pároco, padre Eymard, com seu álibi de "neurótico de guerra" - pois acompanhara nossas tropas na campanha da Itália -, era biruta o bastante para interromper a missa, ainda que fosse no momento da Consagração, a hóstia a meio caminho das alturas, hoc est enim corpus meum, para catar atrás do altar uma vassoura ali deixada para tal finalidade e com ela pôr para correr o cachorro que tivesse confundido a Casa de Deus com a Arca de Noé. Nesses casos, de nada adiantava o padre Eymard ter pendurado na entrada a placa formidanda: "Homens sem paletó, crianças que choram e cachorros nesta igreja: NÃO!"
Depois de muito vadiar pela fotografia, meu olhar à nossa casa torna, e acende em mim a vontade de saber: o que acontece lá dentro no instante em que passa o aviãozinho com a câmera? Ferreira Gullar viveu experiência semelhante e fez de sua curiosidade um poema. Limito-me a imaginar em prosa que boa coisa não estarei fazendo naquele início de puberdade. Culpa de meus pais, que ainda não compraram as obras completas de Machado de Assis na edição da Jackson que até hoje me acompanha. Autodidata também em trabalhos manuais, é possível, é provável que eu esteja entregue a uma atividade da qual cheguei a me considerar o inventor. Ouço ainda o riso escarninho do mais sabido João Batista, entre baforadas de seu precoce mata-ratos, quando, orgulhoso, lhe segredei a descoberta. Pouco importa. Pioneiro ou não, assunto não me faltará no domingo, quando das entranhas do confessionário vier a indagação de sempre: sozinho ou acompanhado?
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