O ESTADÃO - 02/02
“A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo elas parecem estar evaporando”. A observação, feita há cerca de 20 anos pelo professor Samuel P. Huntington, no clássico O Choque das Civilizações, mostra-se pertinente para uma avaliação do atual estado da Humanidade. A ideia ganha consistência quando se puxam para o cenário as manifestações turbulentas em várias cidades do mundo, na onda de conflitos entre grupos étnicos, gangues de jovens, turbas desfraldando a bandeira de um nacionalismo xenófobo, situações que forçam a expansão de partidos de extrema-direita, principalmente na Europa. Ressentem-se todos das instituições políticas, que não conseguem dar vazão às demandas sociais, e brandem a arma do ódio contra o outro, o estrangeiro, o não europeu, notadamente a comunidade muçulmana. Há quem garanta, como o professor Jamie Bartlett, principal autor de um estudo sobre os grupos radicais de extrema direita na Europa, que o continente vive um impasse: deixar de ser tuba de ressonância das liberdades para se transformar em bastião do autoritarismo, ancorado nos eixos do ultra-nacionalismo, islamofobia e do antissemitismo, entre outros.
Já a grave leitura do professor de Harvard sobre o conflito entre civilizações aponta para o limiar de uma Idade de Trevas no planeta. Argumenta que o Ocidente, com a clássica imagem de predomínio avassalador, triunfante, quase total, abre flancos para deixar enxergar uma civilização em declínio, com sua parcela de poder político, econômico e militar diminuindo em relação ao de outras civilizações, particularmente a da Ásia Oriental. A China emerge exuberante nessa paisagem. A Índia, mesmo com desníveis estupendos na sociedade, adentra o ranking de pólos de alta tecnologia. O discurso do Ocidente, com seus tradicionais sermões, já não afeta interlocutores e parceiros como no passado. O fato é que a última crise econômica (2008) serviu para pôr mais lenha na fogueira que consome o estado de bem-estar social, locomotiva da aclamada social-democracia europeia desde o pós-Guerra. Os partidos de esquerda, ao longo de décadas, tentaram repaginar o modelo, experimentando fórmulas e resgatando novas abordagens. Com poucas exceções, não têm sido bem sucedidos.
Resultado dos conflitos: fortalecimento das correntes de extrema-direita em muitos países, a indicar a eventual conquista de boa percentagem (uns 10%) das 751 cadeiras do colegiado no Parlamento Europeu. A perplexidade se instala. Quem poderia imaginar que os terrenos da velha democracia europeia fossem acolher novamente a poeira do deserto da restrição de direitos? Até a França, berço dos Direitos Humanos, mostra sua faceta de barbárie. Aí, expande-se o antissemitismo, cujos propagandistas querem apagar o calvário do holocausto, considerando-o “um detalhe na História”, como proclama o fundador da Frente Nacional francesa, Jean-Marie Le Pen, sucedido no comando do partido por sua filha Marine. A pauta discriminatória é densa: restrição aos imigrantes; limitação de direitos de estrangeiros; proibição de manifestações religiosas de muçulmanos (construção de mesquitas, banimento de burcas) etc. Os exércitos “nacionalistas- protecionistas” multiplicam-se nos partidos e agora nas redes sociais, onde um grupo chega a se auto-denominar “Adolf-adoradores Neandertais”. Na Grécia, o partido de extrema-direita Aurora Dourada usa práticas nazistas – milícias armadas, agressão a imigrantes - e símbolos assemelhados à suástica. Propõe a reintrodução da pena de morte e a possibilidade de aplicá-la a imigrantes sentenciados por delitos.
O discurso segregacionista se adensa enquanto declina a força dos partidos que sustentam os pilares da social-democracia; as lideranças, mesmo em rodízio, não conseguem tapar os buracos abertos pela crise econômica, estampados nos formidáveis contingentes de desempregados. E assim germina nas praças das grandes cidades o vírus de um tipo de violência diferente dos eventos tradicionais – roubos, assaltos e assassinatos deles decorrentes: a violência dos conflitos étnicos e dos choques civilizacionais, como as que colocam na arena muçulmanos e não muçulmanos, países afins (islâmicos e vizinhos). Para as agremiações da direita radical, o Islã e os muçulmanos simbolizam o mesmo papel de “ameaça externa” que Hitler associava aos judeus. Comparação extravagante e sem sentido.
A propósito, a imagem desse truculento e fanático cabo, que se vestiu de ditador para ser o maior facínora da história contemporânea, veio a público esta semana, por ocasião do evento em memória do Holocausto, no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo. Comovidos, ex-prisioneiros dos campos de concentração desfilavam agruras por que passaram. Um horror! Em 6 anos de guerra, foram assassinados 6 milhões de judeus, incluindo 1,5 milhão de crianças, representando um terço da comunidade judaica da época. Foram massacrados também comunistas, ciganos, deficientes, homossexuais, testemunhas de Jeová, doentes psiquiátricos e sindicalistas. 69 anos atrás, o exército soviético abria as portas de Auschwitz, o campo de concentração com 8 mil prisioneiros. A tétrica imagem jamais será esquecida: esqueléticos, velhos, doentes, cabeças raspadas, filas de pessoas cambaleando, famintas, nuas, torturadas, braços tatuados com o numero do registro. Na fachada de entrada, a inscrição Arbeit macht frei” – “o trabalho liberta”. A rememoração do holocausto é uma maneira de puxar o passado para o presente, fato importante para alargar as avenidas do futuro.
Imaginar que, por esse mundão afora, há fanáticos que ainda hoje aplaudem um dos maiores genocídios da história é apostar na hipótese de Samuel Huntington: nas esquinas do mundo, desenha-se o paradigma do “puro caos”.