Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 15, 2011

A hora da verdade - Mario Vargas Llosa


O Estado de S Paulo
Embora eu não seja crente, tenho muitos amigos católicos, sacerdotes e leigos, e um grande respeito pelos que procuram viver segundo suas convicções religiosas. O cardeal Juan Luis Cipriani, arcebispo de Lima, em compensação, me parece representar a pior tradição da Igreja, a autoritária e obscurantista. Sua recente autodefesa, Os direitos humanos irrenunciáveis, publicada no dia 1.º em Lima, justifica as críticas que, em nome da democracia e dos direitos humanos, ele com frequência recebe, sobretudo de setores católicos mais liberais.

Em seu texto, ele desmente que tenha dito que "os direitos humanos são uma "cojudez" (palavra peruana equivalente a besteira)" e afirma que, na verdade, aplicou tal grosseria apenas à Coordenadoria de Direitos Humanos, uma instituição dirigida por uma ex-religiosa espanhola, Pilar Coll, que nos anos das grandes matanças cometidas pela ditadura fujimorista realizou uma admirável campanha de denúncia dos crimes que se cometiam sob o pretexto da luta contra o Sendero Luminoso.

O cardeal Cipriano desmente também que durante a ditadura tivesse guardado silêncio diante de um dos crimes coletivos mais abjetos cometidos por Fujimori e seus cúmplices: a esterilização, mediante enganos, de cerca de 300 mil camponesas, que, por ordem do ditador, tiveram as trompas ligadas por equipes do Ministério da Saúde, que assegurou-lhes que se tratavam de simples vacina ou de uma medida que só as impediria temporariamente de procriar.

Como é que ninguém se inteirou no Peru de que o arcebispo havia considerado reprováveis esses atropelos? Porque em vez de protestar publicamente ele se limitou a fazê-lo em privado, isto é, sussurrando discretamente seu protesto na orelha do ditador. O cardeal não costuma ser tão discreto quando se trata de protestar contra os preservativos, para não falar do aborto ou contra aqueles que no segundo turno das eleições peruanas apoiam Ollanta Humala.

Campanha suja. Por exemplo, por eu o haver feito, ele me admoestou de maneira tonitruante do púlpito da catedral de Lima. Ele me pediu "mais seriedade" e protestou. Como eu me atrevo a dar conselhos aos peruanos sobre em quem devem votar? O cardeal está nervoso e se esquece que ainda há liberdade no Peru e qualquer cidadão pode opinar sobre política sem pedir permissão nem a ele nem a ninguém. Claro que as coisas mudarão se for eleita a senhora Fujimori, a candidata que ele bendizia naquele mesmo ofício no qual me proibia de opinar.

Não é somente o arcebispo de Lima que se excede nesses dias de campanha e guerra suja no Peru. Uma famosa fujimorista, também do Opus Dei, como o monsenhor Cipriani, Martha Chávez, ameaçou publicamente o presidente do Poder Judiciário, o doutor César San Martin, eminente jurista que presidiu o tribunal que condenou Fujimori a 25 anos de prisão por crimes contra os direitos humanos.


No entanto, o mais inquietante são as tentativas de expurgar os meios de comunicação, principalmente os canais de TV e jornalistas independentes, que resistem a se converter em propagandistas da candidatura da filha do ex-ditador. O caso mais famigerado foi o de Patricia Montero, produtora geral, e José Jara, produtor de noticiário, ambos do Canal N, demitidos depois que os diretores consideraram que eles tinham "humanizado" o candidato Humala em reportagens - gostariam que o animalizassem, talvez?
Essas demissões provocaram uma verdadeira tempestade de críticas, entre elas as dos mais prestigiosos jornalistas do próprio Canal N, em defesa de seus colegas, e ameaças de demissões em massa caso continue a caça às bruxas. Isso parece ter paralisado, por enquanto, a dispensa da prestigiosa e experiente jornalista do Canal 4, Laura Puertas, também censurada.

Finalmente, uma denúncia publicada no dia 4 no diário La Primera indica que o governo, apoiado por empresários da mineração, havia encomendado dos serviços de inteligência do Estado um "plano lençol" destinado a destruir a campanha de Humala com métodos delituosos - grampo telefônico, operações caluniosas filtradas para a imprensa para minar seu prestígio e o de seu círculo familiar usando mercenários e provocadores - com os quais, em 1990, o governo conspirou contra mim quando fui candidato à presidência. A denúncia provém, ao que parece, de militares e civis do serviço de inteligência contrários ao uso do órgão para fins políticos alheios a sua missão específica.

Reflexão. Tudo isso merece uma reflexão. Se essas coisas começam a ocorrer agora, em plena campanha eleitoral, não é fácil imaginar o que ocorreria caso a senhora Fujimori ganhe as eleições e a ditadura fuji-montesinista recupere o poder ungida e sacramentada pelos votos dos peruanos? Os jornalistas decentes e responsáveis expulsos de seus postos não seriam cinco (também foram demitidos três da Radio Lider), mas dezenas. E as rádios, os canais de TV e os jornais seriam convertidos, como estiveram durante os oito anos de infâmia que o Peru viveu, em órgãos de propaganda encarregados de justificar os desmandos e o tráfico de poder, encobrindo injúrias e caluniando seus críticos.

Não só o juiz San Martin seria vítima de sua probidade. Todo o Judiciário se veria, uma vez mais, submetido a um crivo implacável para afastar de seus cargos ou reduzir à total inoperância os juízes que resistirem a ser meros instrumentos dóceis do governo.

Repartições públicas, Forças Armadas e empresas privadas seriam outra vez incorporadas ao sistema autoritário para que, de novo, o país inteiro ficasse à mercê do punhadinho de foragidos que, entre 1990 e 2000, cometeu o mais espetacular saque do erário e os crimes mais horrendos contra os direitos humanos de nossa história.

Os que querem semelhante futuro para o Peru não são muitos, mas são poderosos. Como estão assustados com a perspectiva de que Humala vença as eleições e cometa os desaforos de Hugo Chávez na Venezuela, estão dispostos a qualquer coisa para assegurar o triunfo de Keiko Fujimori. Extraordinário paradoxo: para evitar o socialismo, que venha o fascismo. E tudo isso em nome da liberdade, da democracia e do livre mercado. 
Na verdade, a alternativa que o Peru tem nas eleições do dia 5 é salvaguardar a imperfeita democracia política que temos há dez anos e uma política de mercado e de abertura para o mundo que fez crescer nossa economia de maneira notável ou voltar a um regime ditatorial que restabeleceria no governo os que, em cumplicidade com Fujimori e Montesinos, destruíram o Estado de direito, enriqueceram cometendo falcatruas e, durante oito anos, cometeram crimes horrendos sob pretexto de combater a subversão. A meu ver, diante dessas alternativas, Keiko é a pior opção.

Humala assumiu um "compromisso com o povo peruano" que convém ter muito presente, não só na hora de votar nele, mas, sobretudo, quando ele chegar ao governo, para recordá-lo sempre que ele pareça se afastar de alguma de suas promessas. Não haverá reeleição. Serão cumpridos os tratados firmados e não haverá estatizações. O respeito ao pluralismo informativo será total.

Tudo isso é perfeitamente compatível com a democracia. Esse compromisso não depende apenas da vontade de Humala. Depende dos que o apoiam deixarem claro que são a essas políticas que damos nosso apoio. Seguiremos firmes exigindo seu cumprimento.

/ TRADUÇÃO CELSO PACIORNIK
É GANHADOR DO NOBEL DE LITERATURA

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