O GLOBO
A epígrafe é atribuída a Pinheiro Machado, respondendo a um "bate com menas força", de Hermes da Fonseca, de dentro do gabinete presidencial, cuja porta o caudilho esmurrava. Talvez essa frase a aprovasse (aplauda-se o anacoluto, mas condene-se o eco) a autora do livro cuja distribuição foi noticiada pelo GLOBO (14/5). Segundo a reportagem, o tal livreco - "Por uma vida melhor", da coleção "Viver e aprender" - aceita que se fale "os livro" (no plural o artigo e no singular o substantivo), embora com o risco de "preconceito linguístico", que seria a reprovação da sintaxe inusitada. Vai além a autora. Considera corretas orações como "nós pega o peixe" e "os menino pega o peixe". Deus a perdoe e os demônios lhe levem os erros escancarados. Só se explicam atitudes desse tipo por parte de pessoas que, não conseguindo se projetar por alguma apreciável criação original, se empenham em se destacar pelo anômalo, coonestando, por exemplo, o aleijão vernacular, endossando o solecismo que, "realmente feio, é quase bestial", para repetir Camilo Castelo Branco, na sua esquecida polêmica com Carlos de Laet.
Conforme a matéria do GLOBO, a autora do livro afirmou que não se aprende a língua portuguesa "decorando regras ou procurando palavras corretas em dicionários". Parece que ela pretende queimar os léxicos, ainda que conformes com os alcorões da língua. O Ministério da Educação saiu do habitual torpor, para defender a sua afilhada. A nota do MEC diz que o livro estimula a formação de cidadãos que usem a língua com flexibilidade. Trata o alfarrábio como uma espécie de vacina que previne ou cura a moléstia, injetando no paciente o vírus que a provoca.
Urge responder a baboseira, reproduzida na reportagem, de que o ensino deve ser plural, com diferentes gêneros textuais e práticas de comunicação para que a desenvoltura linguística aconteça. É demasia pretender, nos dias correntes, que se escreva com a finura auditiva de Rui, crítico da frase "só pode", do projeto do Código Civil de 1916, porque "só pó estruge como o popocar de um foguete em meio à frase" ("Réplica", 43). Entretanto, não se deixe quem fala e sobretudo quem escreve sucumbir a um hediondo e chocante "houveram coisas terríveis", que Laet, na polêmica aludida, censurou em Camilo, o qual, depois de inconvincente justificativa, pretendeu esconder sua cinca em construções surpreendentes de clássicos como os portugueses Francisco Dias Gomes, Filinto Elísio e Ferreira Gordo. Evite-se o medonho "faziam" tantos anos, encontradiço em Machado de Assis que, como assinalou Rui Barbosa, nunca foi modelo de perfeita linguagem, apesar do estilo primoroso. A gramática normativa profliga a sintaxe que endossa o erro crasso de linguagem. É certo que Manuel Bandeira ("Evocação do Recife") chama a "língua errada do povo" de "língua correta do povo" porque "ele é que fala gostoso o português do Brasil", ao passo que "nós o que fazemos é macaquear a sintaxe lusíada". Mas será que o poeta concordaria com o professor que achasse correto escrever "no cais da Rua da Aurora os menino escondido ia pescar muitos peixe", ou barbarismos semelhantes?
Por conveniência ou apedeutismo, a autora do livro nunca suficientemente combatido foge da lição de que é preciso falar correto. Como ensina o linguista Otto Jespersen, citado por Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua admirável "Nova Gramática do Português Contemporâneo", "falar correto significa o falar que a comunidade espera, e erro em linguagem equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o valor interno das palavras ou formas". A língua é um fenômeno social. Por isso, aceitam-se construções anômalas, que a comunidade concebeu pela necessidade de expressar-se com adequação e comodamente. Daí, as chamadas "elegâncias de linguagem", ou mesmo as figuras de construção, errôneas só na aparência, porém corretas no conteúdo, como os idiotismos (v. g., "nós é que somos patriotas"). Repugna, no entanto, à comunidade e, nela, até às pessoas de linguajar pobre, mais do que os preciosismos, a maneira estropiada de dizer, só usada na chula algaravia, tal como "os livro", "nós pega o peixe", "os menino pega o peixe". Perguntei à minha cozinheira, de primário incompleto mas arguto entendimento, o que achava da frase "menos é adevérbio e adevérbio não vareia". Ela reagiu com a exclamação que também me ocorreu, diante da notícia do livro temerário: "Santo Deus!" º
Conforme a matéria do GLOBO, a autora do livro afirmou que não se aprende a língua portuguesa "decorando regras ou procurando palavras corretas em dicionários". Parece que ela pretende queimar os léxicos, ainda que conformes com os alcorões da língua. O Ministério da Educação saiu do habitual torpor, para defender a sua afilhada. A nota do MEC diz que o livro estimula a formação de cidadãos que usem a língua com flexibilidade. Trata o alfarrábio como uma espécie de vacina que previne ou cura a moléstia, injetando no paciente o vírus que a provoca.
Urge responder a baboseira, reproduzida na reportagem, de que o ensino deve ser plural, com diferentes gêneros textuais e práticas de comunicação para que a desenvoltura linguística aconteça. É demasia pretender, nos dias correntes, que se escreva com a finura auditiva de Rui, crítico da frase "só pode", do projeto do Código Civil de 1916, porque "só pó estruge como o popocar de um foguete em meio à frase" ("Réplica", 43). Entretanto, não se deixe quem fala e sobretudo quem escreve sucumbir a um hediondo e chocante "houveram coisas terríveis", que Laet, na polêmica aludida, censurou em Camilo, o qual, depois de inconvincente justificativa, pretendeu esconder sua cinca em construções surpreendentes de clássicos como os portugueses Francisco Dias Gomes, Filinto Elísio e Ferreira Gordo. Evite-se o medonho "faziam" tantos anos, encontradiço em Machado de Assis que, como assinalou Rui Barbosa, nunca foi modelo de perfeita linguagem, apesar do estilo primoroso. A gramática normativa profliga a sintaxe que endossa o erro crasso de linguagem. É certo que Manuel Bandeira ("Evocação do Recife") chama a "língua errada do povo" de "língua correta do povo" porque "ele é que fala gostoso o português do Brasil", ao passo que "nós o que fazemos é macaquear a sintaxe lusíada". Mas será que o poeta concordaria com o professor que achasse correto escrever "no cais da Rua da Aurora os menino escondido ia pescar muitos peixe", ou barbarismos semelhantes?
Por conveniência ou apedeutismo, a autora do livro nunca suficientemente combatido foge da lição de que é preciso falar correto. Como ensina o linguista Otto Jespersen, citado por Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua admirável "Nova Gramática do Português Contemporâneo", "falar correto significa o falar que a comunidade espera, e erro em linguagem equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o valor interno das palavras ou formas". A língua é um fenômeno social. Por isso, aceitam-se construções anômalas, que a comunidade concebeu pela necessidade de expressar-se com adequação e comodamente. Daí, as chamadas "elegâncias de linguagem", ou mesmo as figuras de construção, errôneas só na aparência, porém corretas no conteúdo, como os idiotismos (v. g., "nós é que somos patriotas"). Repugna, no entanto, à comunidade e, nela, até às pessoas de linguajar pobre, mais do que os preciosismos, a maneira estropiada de dizer, só usada na chula algaravia, tal como "os livro", "nós pega o peixe", "os menino pega o peixe". Perguntei à minha cozinheira, de primário incompleto mas arguto entendimento, o que achava da frase "menos é adevérbio e adevérbio não vareia". Ela reagiu com a exclamação que também me ocorreu, diante da notícia do livro temerário: "Santo Deus!" º