Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, abril 07, 2008

A quem pertence o mosquito da dengue?

Claudia Costin


A agora reconhecida epidemia de dengue no Rio de Janeiro tem, certamente, culpados. Alguém não trabalhou de forma adequada, utilizando os instrumentos para isso necessários: vigilância epidemiológica, ações de combate aos focos do mosquito, informação à população e tratamento dos doentes.

A quem cabe esta responsabilidade? O prefeito César Maia foi rápido em atacar o governo federal, alegando a crise de indefinição institucional dos hospitais federais no Rio. Para evitar confusões é importante notar que os hospitais federais podem ser importantes para tratar os doentes e evitar que o mosquito pique pessoas contaminadas e, assim, espalhe ainda mais a dengue, mas não são a arma principal contra a moléstia. O ministro Temporão rebateu culpando o município onde ocorre boa parte dos casos. O secretário estadual de Saúde rapidamente reconheceu (no meio desse bate-boca, mas não antes) a existência da epidemia e entrou em campo.

Lembrei-me, ao ler as notícias, da atitude excelente do secretário municipal da Saúde de São Paulo na gestão Marta Suplicy, Eduardo Jorge. Em 2002, quando casos de dengue começaram a cruzar a fronteira entre o Rio e São Paulo, prontamente alertou a população de que se tratava de uma epidemia. Depois de forte ação educativa, fez aprovar uma lei antipática, mas efetiva, que multava quem mantinha possíveis criadouros do mosquito. Envolveu supermercados em recolhimento de descartáveis que pudessem ser focos de mosquitos e não culpou outros por um problema em que a responsabilidade é compartilhada. Numa entrevista à Rádio CBN, foi-lhe sugerido que a culpa seria do governo federal, então sob o comando de outro partido. Não aceitou a saída fácil e disse que o Ministério da Saúde enviara todo o material e apoio a tempo.

A ONG Contas Abertas evidenciou que o gasto real no combate à dengue no ano passado foi menor que o autorizado no Orçamento: o Ministério da Saúde só aplicou um terço do dinheiro disponível para tentar impedir a epidemia. Mesmo que valor gasto não seja sinônimo de qualidade do gasto, é importante avaliar por que houve esse corte de recursos na prevenção.

Mas uma epidemia, mesmo que devastadora, não é a única razão que justifica uma ação forte do Estado na saúde. É necessário garantir que crianças não morram pouco depois de nascer, que gestantes tenham uma gravidez sadia e um parto que não ponha em risco a vida da mãe e do bebê, que a expectativa de vida se estenda com qualidade e que os jovens tenham disposição e aptidões para ingressar no mercado de trabalho. Os indicadores de desenvolvimento humano mostram que fizemos alguns progressos importantes para um país com a população do tamanho da nossa e com disparidades importantes. A mortalidade infantil, que era de 87,9/1.000 em 1980, hoje é de 25,8/1.000. A expectativa de vida elevou-se de 63,1 anos em 1980 para 71,9 em 2005. Apresentamos resultados positivos no enfrentamento da pandemia da aids, não só na prevenção de novos casos, mas no tratamento, área em que muitos países fracassaram (mesmo que o perfil do infectado tenha mudado). Outros países também mostraram avanços na prevenção e no tratamento de doenças e apresentam até indicadores superiores ao nosso. Mas os resultados no Brasil contam, sim, com uma participação importante de políticas sociais competentes, sobretudo de saúde e educação.

Construímos no País um sistema de saúde acusado por muitos de inepto, mas certamente mais inclusivo que o que tínhamos até o final da década de 1980. Dispúnhamos de Secretarias estaduais e, em alguns casos, de Secretarias municipais de Saúde desenvolvendo ações desarticuladas, sobretudo de prevenção. O tratamento era de responsabilidade quase que exclusiva do Inamps, que, sucedendo a instituições que compunham o antigo sistema de previdência social, atendia apenas o mercado de trabalho formal (em 1980, restrito a 56% da população economicamente ativa). Os demais recebiam tratamento, como indigentes, em hospitais filantrópicos, como as Santas Casas. Assim como a escola pública atendera, durante muito tempo, apenas uma parcela da população brasileira em idade escolar, o Inamps, a principal oferta pública de tratamento de doenças, atendia privilegiados que conseguiam registro formal de trabalho (tanto em saúde quanto em educação, a principal beneficiária era a classe média, que posteriormente, com a universalização, abandonou os dois sistemas). A universalização traz, normalmente, problemas sérios de qualidade dos serviços oferecidos. A saída da classe média se associa a este problema e o agrava.

O SUS, criado pela Constituição de 1988, integrou os diversos serviços públicos de saúde, tanto de prevenção quanto de tratamento, num sistema articulado. Resultando de ampla mobilização de profissionais de saúde, o chamado movimento sanitarista, que acompanhara o processo de redemocratização do País, o sistema surgiu como plataforma estruturada em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde, que defendia a saúde como direito do cidadão e dever do Estado e propôs um sistema universalizado, descentralizado, com participação da população usuária, e hierarquizado de serviços de saúde. A Constituição de 1988 iria não apenas consagrar estas idéias, mas permitir a construção de instrumentos concretos para sua implantação.

Desde então, progressos importantes ocorreram. Entre eles, a Norma Operacional Básica 1, de 1996, que avança na municipalização (e a vida concreta ocorre no município), ao dotar a autoridade pública municipal de poder para mobilizar diferentes serviços presentes no município, e até fora dele, para o atendimento às necessidades de saúde de sua população. O ator principal, a partir dessa norma, torna-se o prefeito, sempre com o apoio das esferas estadual e federal. Com ele, a palavra.

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