Carlos Alberto Di Franco
Multiplicaram-se as versões do governo, seguindo rigorosamente o mesmo receituário das crises anteriores. Reportagem da revista Veja, confirmando o que o jornal O Estado de S. Paulo já antecipara em 19 de fevereiro, informa que o governo preparou um dossiê, de 13 páginas, sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique e da ex-primeira-dama Ruth Cardoso.
O governo, como sempre, reage com aparente indignação. A Casa Civil divulgou nota em que ameaça processar a revista pela divulgação de dados considerados sigilosos e afirma que a revista "mente" e "manipula" informações. O texto da Casa Civil nega a existência de um dossiê contra a oposição, afirma que o trabalho feito atende à determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) e informa que abriria sindicância para apurar o vazamento das informações.
O TCU, no entanto, afirma que não pediu informações à base de dados do Planalto. O ministro da Justiça, Tarso Genro, faz que não entendeu e insiste: "Não existe dossiê. O que existe é um trabalho que está sendo feito pela Casa Civil, a pedido do TCU e na expectativa da CPI, para oferecer dados que podem ser requisitados pela CPI."
O governo arma uma estratégia para impedir a convocação da ministra Dilma Rousseff pela CPI dos Cartões Corporativos. A convocação é derrotada pela maioria governista.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo afirma que a secretária-executiva da Casa Civil, Erenice Alves Guerra, montou o suposto dossiê. A Casa Civil divulga nota na qual abandona a tese de que fez um levantamento dos dados a pedido do TCU. Afirma, agora, que os dados foram pinçados de uma base de dados que está sendo digitada. Nega que Erenice tenha mandado fazer o dossiê. O ministro Tarso Genro atribui o episódio a um "debate político-institucional" entre governo e oposição.
O presidente Lula, seguindo o padrão adotado em ocasiões análogas, apóia os envolvidos e atribui tudo ao ódio da oposição e ao negativismo das elites. Assim foi com os protagonistas do maior espetáculo de corrupção da História deste país. E assim será com os coadjuvantes do novo capítulo da novela aética. Surfando, tranqüilo, numa onda de 55% de aprovação, índice sem dúvida impressionante, o intuitivo presidente confia na força do seu taco. E é aí que Sua Excelência se engana e, ademais, presta imenso desserviço à democracia e à sua própria biografia.
O País, queiram ou não os seus políticos e governantes, vai ser passado a limpo. É uma questão de tempo. O Supremo Tribunal Federal, integrado por magistrados competentes e com um nome a zelar, não brincará com a denúncia do procurador-geral contra os quadrilheiros do mensalão. Denúncia, aliás, referendada pelo brilhante relatório do ministro Joaquim Barbosa. A economia, em qualquer país, sempre teve influência significativa nos humores eleitorais. Pode ser, muitas vezes, um salvo-conduto para a impunidade. Mas tal distorção tem seu prazo de validade. Não se constrói uma grande nação de costas para a ética. A demanda de honradez e moralidade acaba se impondo. Afinal, a corrupção é o verdadeiro câncer que corrói o organismo nacional. É ela que alimenta a fome que o presidente da República, certamente com boa intenção, quer combater. É ela que abandona os idosos que são maltratados nas filas de uma instituição que tem sido historicamente dominada pelo banditismo e pela incompetência.
O Brasil, felizmente, ainda conta com um Ministério Público atuante, um Judiciário, não obstante decepções pontuais, bastante razoável e uma imprensa que não se dobra às pressões do poder. É preciso, no entanto, que a sociedade, sobretudo a classe média, mais informada e educada, assuma o seu papel no combate à corrupção. As massas desvalidas, reféns do populismo interesseiro e da desinformação, só serão acordadas se a classe média, balança de qualquer democracia, decidir dar um basta à vilania que tomou conta do núcleo do poder. Chegou a hora de a sociedade civil mostrar sua cara e sua força.
É preciso, finalmente, cobrar a reforma política. Todos sabem isso. Há décadas. O atual modelo é a principal causa da corrupção. Quando falta transparência, sobram sombras e autoritarismo. O sucesso da economia e a falta de princípios podem levar ao pragmatismo agressivo. Mas o descaso com a ética, a longo prazo, termina sempre no pântano do autoritarismo. Foi o que se viu, por exemplo, nos excessos da ditadura militar. Sob o manto protetor do "milagre brasileiro", marca registrada do governo Médici, muitos abusos foram cometidos. Os cidadãos, embalados pelos resultados de um crescimento econômico que era comemorado com slogans do tipo "Brasil, ame-o ou deixe-o", fecharam os olhos para ações arbitrárias que, como é lógico, apresentaram uma pesada fatura. Não se pisoteia a lei, a ética e a liberdade impunemente.
Um presidente da República com 55% de aprovação, mas leniente com casos de corrupção e tolerante com patentes desvios éticos de seus subordinados, é tão perigoso quanto a força bruta de uma tropa de choque. Se os princípios não valem, valerá a vontade do príncipe. É só uma questão de tempo.