Cuíca de Santo Amaro
ou o porão e o sótão
Escrevi este artigo para um "estudo" sobre o assunto. Como, acho, nunca foi publicado, publico agora.
"... nem se deve pensar que uma coisa é verdadeira porque dita com eloqüência. Nem falsa porque enunciada sem harmonia. Nem também verdadeira só por ser proferida rudemente. Ou falsa porque a linguagem é rica. Sabedoria e tolice são como alimentos saudáveis ou maléficos. Frases simples ou pomposas são como pratos elegantes ou rústicos; qualquer espécie de iguaria pode ser servida em qualquer qualidade de prato."
Santo Agostinho – Confissões
Não sou interessado na literatura popular, dita de cordel. Quando o jornalista PaoIo Marconi me pediu comentário pra seu livro sobre CUÍCA, íntegro na minha irresponsabilidade, recusei. Pois nunca tinha ouvido falar de CUÍCA de Santo Amaro. Mas Marconi, confiante no que faz, me mandou o livro sobre o assunto.
Ao contrário do que eu tinha pensado, o livro não é um estudo da poética popular (bastante duvidosa mesmo em termos populares) de José Gomes, o CUÍCA, mas fala de sua extraordinária capacidade de comunicação e de como usava isso intelectual, social, moral e last, mas absolutamente não the least, financeiramente. Intelectualmente CUÍCA tirava minhoca do asfalto – com paupérrima instrução e poucos dados formulava lá suas redondilhas, com muito pé quebrado e muita rima pobre, mas (aqui não há o que discutir) sempre atingia seu alvo: comunicar.
Comunicar pra punir quem não se compunha com ele e/ou pra insinuar (e bota insinuação nisso!) que se compusesse. Comunicar buscando, instintivamente, prestígio social no seu picoIo mundo, atemorizando ou bajulando os semipoderosos e até mesmo uns poucos grandes poderosos. Comunicar para invectivar mazelas morais da sociedade, vistas preconceituosamente pela própria sociedade que as praticava, e também por ele, que – é natural – achava o fim da picada qualquer tipo de prática sexual que fugisse à norma. Não me perguntem qual é a norma.
O livro: ensaio competente do tempo baiano em que viveu CUÍCA, não está apenas falando de um poeta popular lutador por causas justas algumas vezes e achacador quase sempre, mas da própria imprensa na Bahia e por extensão também de Chateaubriand, de Hearst, de Pulitzer e, em nossos dias, de Murdock.
E, mais longe, fala de Gould, Nobel, Frick, Gulbelkian e... Ponzi! O ítalo-americano Ponzi, sem dúvida o maior vigarista do século XX, que agitou o submundo econômico financeiro dos Estados Unidos e veio acabar como indigente num leito do Hospital São Sebastião no Rio de Janeiro, declarando ao morrer: "A diferença entre mim e o Pierpont Morgan é que ele deu certo".
É isso aí. Chateaubriand construiu, sem nenhum pudor, um império de comunicação baseado em campanhas humanitárias (leite pras crianças), movimentos progressistas (criou a mentalidade aeronáutica no Brasil distribuindo aviões Paulistinha em municípios do interior) e gigantescas promoções artísticas (o grande Museu de Arte de São Paulo, belo exemplo). Tudo, o clã Ermírio de Morais que o lembre, pretextos-gazuas pro aumento do Império.
Hearst, o Cidadão Kane de Orson Welles, fundou a "imprensa amarela", com todo o seu corolário de vilificações, chantagem e até estímulo ao assassinato político (foi denunciado por Theodore RooseveIt em seu discurso de posse). Sensacionalistas, falsas, explorando o crime e a credulidade pública, suas publicações acabaram, por reação, renovando a imprensa americana – outros jornais, não podendo concorrer no estilo, obrigaram-se a mais seriedade editorial, pesquisas mais profundas, e busca de imparcialidade*.
Pulitzer concorria com Hearst na corrida – valendo tudo – pelas tiragens dos jornais. Se transformou num dos maiores prêmios de jornalismo do mundo.
E, em nosso tempo, o aventureiro Murdock, depois de comprar jornais na Austrália, Estados Unidos e Inglaterra (nem o vetusto Times escapou de suas garras) usando os métodos mais discutíveis (discutíveis, Millôr?), acabou responsável pela renovação da imprensa inglesa entravada por reivindicações bastante reacionárias dos sindicatos. E por aí vai**.
Fui longe demais? É o que pretendi. A modesta canalhice de um poeta popular – imperativa pela necessidade de sobrevivência e contrabalançada por momentos em que é insopitável a defesa de interesses alheios e/ou populares – é a mesma dos órgãos de imprensa e comunicação, criados e ampliados por todos os métodos disponíveis, numa luta livre em que, ocasionalmente, vale até a defesa do bem público. Para manutenção de uma imagem mínima de dignidade.
Só que, além de lutar contra a sociedade como um todo, o poeta CUÍCA ainda tinha contra ele a mesma imprensa (essa sociedade) de que era mero reflexo e que, claro, não queria, repudiava se reconhecer nele. E por isso ou o atacava, ou o desprezava, ou pura e simplesmente o ignorava. E o esquecia. Pra sempre.
* Uma revelação: o ódio votado por Hearst a Orson Welles tem razão freudiana. Um tycoon como Hearst estava acostumado a tudo quanto é ataque e Cidadão Kane, bem analisado, até lhe é lisonjeiro. Acontece, porém, que a chave do filme, seu Ieitmotiv, a palavra rosebud/botão de rosa, não tinha sentido assim tão inocente. Era a maneira carinhosa, extremamente íntima (e que Hearst julgava desconhecida de todos), com que ele se referia à pudenda, periquita de sua eterna amante Marion Davies.
** Em nossos dias não convém esquecer o admirável Berlusconi.