Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 05, 2008

Livros A trilogia A Espada de Honra, de Evelyn Waugh

Uma delícia de guerra

Já se pode ler completa a trilogia A Espada de Honra,
épico sobre a II Guerra de um mestre do humor negro
– o romancista-soldado Evelyn Waugh


Nelson Ascher

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Trechos dos livros

Homens em Armas
Oficiais e Gentlemen
Rendição Incondicional

Nem todas as guerras obtiveram em tempo as epopéias que mereciam. A que talvez ocorreu em Tróia levou séculos para ser cantada por Homero. A derrota de Napoleão na Rússia em 1812 só ganhou descrição à altura em 1869, com Guerra e Paz, de Leon Tolstoi. Quanto às duas guerras mundiais do século passado, elas renderam grande historiografia, ótimo cinema, boa ficção. Narrativas, porém, que combinassem extensão, minúcia e sopro épico foram raras. A trilogia A Espada de Honra (1952-1961), do inglês Evelyn Waugh (1903-1966), é uma dessas.

Composta de três romances lançados no Brasil pela Nova Fronteira em tradução de Antonio Sepulveda, Homens em Armas (304 páginas; 39,90 reais), Oficiais e Gentlemen (312 páginas; 39,90 reais) e Rendição Incondicional (288 páginas; 39,90 reais), a trilogia narra as peripécias de um oficial britânico durante a II Guerra, desde os empecilhos que lhe emperram o alistamento até a desilusão diante do desfecho ambíguo. Seu desencanto, aliás, explica o título geral, pois a espada em questão, homenagem de sua majestade a Stalin por ocasião da vitória em Stalingrado, pode ser tudo, menos honrosa para o protagonista que abomina os soviéticos tanto quanto os nazistas.

Guy Crouchback, nascido em 29 de outubro de 1903, vive sozinho com a criadagem no castelo adquirido pelo avô na costa italiana. Último descendente masculino de uma família empobrecida de nobres que, fiéis ao catolicismo, sofreram perseguições outrora, o herói, traído e deixado pela esposa, não pode, devido à fé, se casar de novo. Quando a conflagração se anuncia, ele, não somente por patriotismo, para cumprir o dever de classe ou dar sentido à vida, mas para expressar igualmente o desdém que sente pela modernidade materializada na Alemanha nazista e na Rússia comunista, regressa a seu país prestes a entrar em guerra.

Evelyn Waugh, nascido em 28 de outubro de 1903, em Londres, teve uma juventude mais agitada. Filho (e, depois, pai) de escritor, oriundo da alta classe média, ele revelava, tanto no comportamento esnobe como nos temas favoritos, uma admiração sem limites pela aristocracia e suas supostas virtudes. Reacionário assumido, anti-semita, simpatizante do fascismo italiano e do franquismo, misantropo e misógino, conhecia e detestava o mundo contemporâneo do qual, no entanto, desfrutava e gostava de zombar em sátiras cruéis que o tornaram famoso e que, reeditadas ou convertidas em minisséries, continuam populares. Abandonado pela mulher adúltera, teve a sorte de se divorciar logo antes de adotar o catolicismo ao qual se dedicaria com a intransigência do neófito. Deflagrada a guerra, ele também resolveu se alistar.

Jovem para ter lutado na I Guerra Mundial, Crouchback descobre que o julgam velho para combater, e se põe a buscar contatos que lhe permitam ingressar, como aspirante a oficial, nas Forças Armadas. Waugh, por seu turno, recorreu a ninguém menos que um velho amigo: o filho de Winston Churchill. Assim, a trajetória militar do personagem coincide, em linhas gerais, com a de seu criador. Ambos enfrentaram as mesmas vicissitudes, encontraram gente semelhante, serviram em regimentos similares, estiveram nos mesmos lugares e batalhas. Esse caráter de autobiografia romanceada de A Espada de Honra responde por suas virtudes e limitações.

Desde Tolstoi não surgira um romancista-soldado a um tempo tão talentoso e experiente. Apesar de o russo ser o artista superior que, narrando um conflito anterior à sua geração, reconstrói uma época e uma sociedade completa, o inglês leva a vantagem de abordar eventos dos quais participara. A experiência da desordem, dos labirintos burocráticos, do tédio freqüente, a incerteza a respeito do futuro e inclusive do que sucedera há dias, tudo emerge das páginas com vida própria. Já o protagonista não passa de uma versão empobrecida do autor, um Waugh despido de seus piores – e mais interessantes – atributos. (O escritor, por exemplo, quase foi morto certa feita por subordinados que irritara.) São antes os personagens secundários – Apthorpe, Ritchie-Hook, Trimmer, Ludovic – que constituem as invenções ficcionais dignas de sua arte e de seu humor negro.

Como é quase impossível expor, em obra dotada de unidade, a amplitude de tamanho conflito, a narrativa épica que se ocupe da II Guerra requer uma seleção precisa de episódios que lhe explicitem o sentido. Malgrado nem o escritor nem seu país terem participado de suas batalhas mais decisivas ou presenciado seus horrores mais inéditos, foi resistindo a sós enquanto Hitler e Stalin trabalhavam juntos que o Reino Unido virou catalisador do triunfo de uma civilização imperfeita sobre a barbárie perfeita. Se a guerra inglesa, por suas limitações, presenteou Waugh com a seleção de que precisava, conseguir apresentá-la de forma tão coerente e empolgante é feito de que poucos se mostraram capazes.

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