sinopse
Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br, Site: www.danielpiza.com.br
O caso da moda brasileira merece análises que ainda não foram realmente feitas, por ilustrar como a obsessão brasileira por 'identidade' termina sendo a maior inimiga dessa mesma 'identidade'. Nos últimos 10 ou 15 anos, a moda brasileira teve um surto criativo que lançou estilistas, eventos e negócios; acima de tudo, lançou um oba-oba, uma crença em muitos aspectos irrealista a respeito de seu alcance. E aí os tombos vêm. O mais recente foi a criação de uma corporação, chamada Identidade Moda, que anunciou compra e fusão de marcas importantes, foi considerada como um salto no 'business' e, aparentemente, não tinha capital para tanto, o que levou criadores como Alexandre Herchcovitch a sair dela.
O curioso é que Herchcovitch sempre teve a lucidez de não cair no conto de fadas da identidade brasileira, dizendo que fazia seu trabalho de acordo com seus critérios e suas inquietações. Isso que chamam de identidade não passa de um rótulo, de um estigma e, como todo estigma, só acaba aprisionando o estilo. Participei na terça de um seminário sobre o assunto, Fashion Marketing, promovido por Gloria Kalil, e transmiti a Ermenegildo Zegna uma pergunta da platéia sobre o que distingue (ou 'diferencia', como se diz atualmente) uma tal 'Marca Brasil' aos olhos do mercado internacional. Ele disse que não existe isso: existem marcas, não uma Marca; o criador tem de buscar seu mercado em função da qualidade do que faz. Sobre a concorrência dos chineses na indústria têxtil, foi claro: façam o que eles não sabem fazer.
Essa ansiedade de definir o brasileiro, já apontei, é um essencialismo que não leva a lugar nenhum. Sim, o Brasil tem uma imagem de país hospitaleiro, caloroso e informal, mas por que um criador precisa seguir essa fórmula? Não será isso que impede que a moda brasileira raramente seja vista como algo além de biquínis e sandálias? Eis a questão. O caso serve de ilustração para outras áreas criativas. Eu mesmo testemunhei o que seria um boom das artes plásticas brasileiras no exterior. Colonizadamente, a imprensa local passou a divulgar o fato - baseado em algumas matérias publicadas no exterior - como se o 'Primeiro Mundo' estivesse de joelhos diante da liberdade tupi. Hoje, mais de 12 anos depois, afora dois ou três nomes como Vik Muniz e Beatriz Milhazes, a arte brasileira continua desconhecida, ou conhecida pelo que nem é seu melhor... Os rótulos sempre acabam rotos.
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Nelson Rodrigues é sempre lembrado quando essa discussão vem à tona. Nos anos 50, ele criticou o 'complexo de inferioridade' da crônica esportiva brasileira que idealizava times como a Hungria e outros escretes europeus e não via que a seleção formada por Didi, Pelé, Garrincha e Nilton Santos era a melhor. Seu alvo, inspirado nas teses de Gilberto Freyre filtradas por seu irmão (de Nelson) Mario Filho, eram os que supunham que um povo mestiço não produzisse grandes atletas. Mas a Nelson, mesmo conservador como era, não escaparia que o mesmo complexo de inferioridade é o que alimenta esses entusiasmos semifictícios a respeito da visão do mundo sobre o Brasil. Ele se traduz rapidamente em síndrome de superioridade: se o Brasil perde um jogo decisivo de Copa, jamais é por mérito do adversário...
Seu teatro, afinal, atingiu a grandeza ao captar no mais prosaico cotidiano brasileiro os dramas psíquicos universais. Veja o caso de Senhora dos Afogados, de 1947, atualmente em cartaz no Sesc Anchieta em direção de Antunes Filho, com Lee Thalor e outros no elenco. De sua experiência de repórter policial, somada à influência do teatro expressionista e da obra do americano Eugene O'Neill (em especial Electra de Luto), ele tirou inspiração para uma tragédia familiar em três atos sobre uma irmã que afoga outras duas para ficar sozinha com o pai - e ainda empurra a mãe para os braços do filho dele com uma prostituta que ele matou 19 anos antes.
Por trás dessa sucessão de incestos e homicídios há a visão de Nelson sobre como as paixões que os seres humanos tentam reprimir acabam saindo pelas formas mais tortas. Ele dizia sempre que as pessoas vivem uma vida sem autenticidade e coragem e não negava que seu teatro tinha a intenção de expiar essas frustrações. Infelizmente, a montagem de Antunes tira a coloquialidade das falas e rompe a superfície naturalista em que Nelson pinta os traumas ancestrais. Essa mistura do banal com o mítico é sua 'marca' - o modo como revela sob a aparência suave do trato brasileiro as fraturas mais fundas.
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Lendo os 'especialistas' sobre a morte da menina Isabela, jogada do alto de um prédio em Guarulhos na semana retrasada, fico pasmo. Eles nem parecem ter lido o Freud das Novas Conferências Introdutórias, que critica o modo como o ser humano renuncia à agressão que lhe é inerente, tornando-se ainda mais agressivo. E estão sempre prontos para generalizar, atendendo à comoção pública, e apontar a 'vida moderna' como culpada. Bem, as famílias rodriguianas, tementes a Deus e tudo o mais, são o que se costuma classificar de 'estruturadas'... Há contornos de época e lugar em qualquer crime, mas as motivações envolvem áreas de sombra muito além do presente. Por mais que nos queixemos da falta de humanismo atual, a barbárie não cabe em explicações moralistas do tipo 'madrastas são más'. Nelson sabia.
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Também costumo ler gestos de 'desagravo', digamos assim, sempre que alguém aponta problemas na cultura brasileira. Se se afirma, por exemplo, que a MPB perdeu qualidade, pois a geração de Lenine e Carlinhos Brown não tem a qualidade da de Chico e Caetano, logo aparece um defensor da maravilhosa história da canção nacional, etc. O curioso é que sem argumento concreto nenhum para nos convencer de que aqueles nomes se comparam... O mesmo quando se diz que nossas revistas culturais poderiam ser melhores, porque lhes falta ousadia e sofisticação: não demora e um sujeito surge para dizer que 'ao menos elas existem'. E quem disse que não? É o mesmo problema da obsessão por identidade ou, no termo corrente, 'auto-estima': em nome de defender algo promissor, fecham-se os olhos para seus defeitos. E eles vêm cobrar.
MEA-CULPA
A peça de Schubert a que me referi quando comentei na semana passada o CD do pianista Leif Ove Andsnes é a Sonata em Si Bemol. E a frase 'Não basta à mulher de César ser honesta, é preciso parecer honesta', citada duas semanas antes, é de Cícero, não de Pompeu. No site e no blog essas correções já estavam feitas. Outra coisa: colegas tradutores cobram de mim o crédito quando menciono livros editados no Brasil. Têm razão. Já traduzi muito, sei quanto é difícil e mal pago, logo não posso deixar de informar quem traduziu os livros que resenho. Farei isso sempre de agora em diante.
RODAPÉ
Por falar nisso, também me perguntam se há previsão de lançamento do livro de James Wood, How Fiction Works, em português. Que eu saiba, não, até por ser bem recente (saiu na Inglaterra, nos EUA ainda não). Mas fica a sugestão.
Outra observação interessante dele, aproveitando, é sobre os nomes de personagens em muitos escritores. Muitos têm uma razão simbólica. Eu mesmo me dei conta outro dia de que Aschenbach, o protagonista decadente de Morte em Veneza, de Thomas Mann, é uma contração de 'cinzas' (Aschen) com 'córrego' (Bach). Na Veneza sobre águas, ele é um rio de cinzas... Ou pense em Machado de Assis. Pensar que nomes como Bento, Glória, Socorro, Brás, Pestana, Palha, Flora e Virgínia foram dados aleatoriamente é desdenhar do mestre.
CADERNOS DO CINEMA
Diante da edição frenética ainda em moda nos cinemas americano e, por tabela, brasileiro, ver em DVD Pai e Filha, de Ozu (coleção Lume Clássicos), é um respiro de arte e bom gosto. Seus planos rigorosos e inteligentes, em vez de acentuarem o ritmo vagaroso da história, dão densidade a ela. Arigatô.
POR QUE NÃO ME UFANO
Foi de rir-chorar a declaração de Matilde Ribeiro sobre seus gastos com cartão corporativo em 'free shop' no aeroporto, de que ela precisa aproveitar a oportunidade e comprar 'mesmo' aquelas coisas que não existem em território nacional. Ecoou dona Marisa dizendo que tirou cidadania italiana para os filhos porque quer dar a eles um 'futuro melhor'. E quando Matilde, como aconteceu nos EUA, receberá alguma punição?
De rir-chorar foi também ler que os estudantes da UnB não podem invadir prédio público para protestar contra o reitor Timothy Mulholland, que abusou de dinheiro público para benefícios particulares. Ok, os estudantes poderiam ter feito uma manifestação ou greve, mas não há uma inversão de valores aí? O foco deve ser 'Bye bye, Timothy', tanto é que precisou pedir afastamento do cargo. Pelas provas e suspeitas disponíveis, não deveria nem pensar em voltar.
Aforismos sem juízo
O arrogante desfia certezas. O petulante as desafia.
'As famílias rodriguianas são o que se costuma classificar de 'estruturadas''
'Obsessão brasileira por 'identidade' termina sendo a maior inimiga
dessa 'identidade''