Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 06, 2008

Daniel Piza PT traduções

É preciso um sono pesado para uma cabeça ágil.

Lembra-se do Diogo, meu amigo petista radical, de boina com estrela e tudo? Na última vez em que o encontrei, em julho de 2005, ele estava inconsolável com o esquema do mensalão, mais ainda do que com o caso Waldomiro Diniz, que já o deixara prostrado no encontro anterior, em dezembro de 2004. Pois eis que o reencontro agora, mas não no bar, não diante de chope ou cachaça; estamos num ponto de táxi, e ele vestido de terno e gravata, gel no cabelo e pasta sob o braço.

- Diogo, tudo bem? Pra onde vai?

- Melhor impossível, meu caro. Vou pro aeroporto, quer carona?

- Eu também, que coincidência! Vamos rachar, então.

- Nada disso. Faço questão de pagar, até porque estou lhe devendo aqueles chopes... (Os dois entram no carro.)

- Ok. Bem se vê que você vai muito bem. Da última vez...

- Eu sei, eu sei. Peço desculpas por aquilo. Acho que eram meus resquícios de ilusões juvenis...

- Mas não só isso, né? Você chegou a chamar o PT de ''PMDB do século 21'', de tão decepcionado estava com a semelhança entre ele e o sistema de poder brasileiro. E reclamou do despreparo administrativo do Lula.

- Ah, mas vai dizer que as coisas não melhoraram a olhos vistos?

- Coisas?

- A economia, principalmente. A classe C cresce e consome como nunca, o PIB está em 5%, o Bolsa-Família injeta dinheiro em regiões pobres.

- Sim, senhor; estou espantado...

- Com o quê?

- Com esse seu otimismo. Três anos atrás você...

- Não precisa repetir, aquilo foi uma fase ruim.

- Quer dizer então que agora estamos numa fase boa, que você está satisfeito com os rumos do Brasil?

- Ah, você sabe, ainda há muito pra fazer, mas estamos melhorando.

- Mas quantas vezes na história do Brasil já não houve um ciclo desses, de expansão do mercado interno pela melhora nas contas externas, seguido por uma retração quando a conjuntura mundial piorou? O presidente Lula citou outro dia Ernesto Geisel e, além de ser esquisito citar uma figura tão autoritária, um milico que costumávamos odiar, disse que com o PAC o Estado voltou a investir do mesmo modo no Brasil, etc. Naquele tempo também tivemos crescimento econômico e acesso inédito da população mais pobre a bens de consumo. Tinha até a aposentadoria rural! E as MPs se chamavam decretos-leis...

- É, mas vocês disseram que Lula não era competente, que a economia iria mal com ele...

- Não, vocês disseram que ele ia mudar o ''modelo econômico'', pra dizer o mínimo, e que a inflação poderia ser mais alta em nome do desenvolvimentismo. Continua a mesma coisa: juros altos, câmbio valorizado... Lula andou até elogiando o Proer do FHC.

- E está dando um baile de resultados no FHC.

- Está; mais ou menos, está... até onde o governo ajuda quando não atrapalha. Mas precisa tirar para dançar também a ética e a decência? Ele tem elogiado e defendido todo mundo que fez falcatrua; os mais recentes, Severino Cavalcanti e Matilde Ribeiro. São os tais ''erros administrativos''.

- E por acaso a oposição é melhor?

- Não é; mas isso é motivo?

- Não que seja motivo, mas você precisa considerar: 58% da população acha o governo bom ou ótimo. Sei que há problemas, mas também há avanços.

- Repito: é motivo?

- Olha, eu também queria que no Brasil não tivesse corrupção, que a violência acabasse, que houvesse menos pobreza. No mundo todo existem essas coisas, mesmo no tal Primeiro Mundo. Como ainda estamos em desenvolvimento, é natural que os problemas sejam mais graves. Mas...

- Mas estamos quase lá, como diz o presidente?

- Acho que sim. Este país tem tudo: natureza cheia de riqueza, povo multirracial conhecido pela alegria... A seguir assim, é uma questão de tempo!

- Já avisou os adversários?

- Ah, sabia que você viria com a frase do Garrincha...

- Há muitos países crescendo mais e melhor do que a gente. Por sinal, você viu nessa pesquisa sobre o governo qual era o item de maior aprovação?

- Qual?

- A educação! Todo mundo diz que Lula é aprovado porque a economia vai bem e porque ele é um símbolo do brasileiro humilde que ''chegou lá''... e a população elogia a educação?

- É...

- É um baita exemplo da falta de educação, essa estatística. Só mesmo o brasileiro para estar satisfeito com o que se ensina nas escolas... Pense no que a Coréia ou a Irlanda fizeram na última geração, o investimento em educação e tecnologia, e compare com o que se faz aqui. Ou não se faz...

- Pode ser, mas...

- E há o comportamento no poder, não vamos esquecer. O PT se comporta com o mesmo padrão oligárquico que atravessa a história da república. A máquina é a casa-da-mãe-joana, onde cabem todos os amigos, aliados e apaniguados; empreiteiros fazem a festa, sindicatos não precisam prestar contas, corruptos flagrados continuam poderosos nos bastidores; o chefe viaja pelo território fazendo discursos de auto-elogio diante de obras inacabadas; a imprensa livre precisa ser contraposta pela mídia estatal; dossiês são armados contra inimigos. Qual a diferença para um ACM?

- Mas você viu que esse dossiê foi vazado pelo PSDB, não viu? A campanha para 2010 já começou, meu amigo, e os caras estão doidos com o sucesso do Lula. No fundo, eles são todos iguais...

- É... e nós, que não somos políticos, é que somos diferentes... (Ambos riem.) Bom, mas chega de falar de política, né? Toda vez é assim com a gente. Me conte, pra onde vai viajar?

Diogo se mexe no banco do carro, como que incomodado com a posição, e sorri quando vê que a hora de saltar se aproxima.

- Eu... estou indo pra Brasília resolver uns negócios. Mas depois te conto melhor, tá? Agora estou com pressa. Tchau, tudo de bom pra você.

DE LA MUSIQUE

Depois de um longo e tumultuado verão, os bons CDs do ano começam a aparecer. Late Piano Sonatas, de Schubert, interpretadas pelo norueguês Leif Ove Andsnes, de 32 anos, é grande pedida. Não é mole executar peças que Radu Lupu, Alfred Brendel e Mitsuko Uchida já gravaram tão bem, mas Andsnes é um virtuoso que valoriza a subestimada estrutura da composição ao mesmo tempo que lhe dá uma expressão toda pessoal, alternando pausas, silêncios, como no famoso ''andante'' da Sonata em Si Menor, e passagens em que usa muito os pedais, como no ''scherzo'' depois. Schubert morreu com a idade de Andsnes; com ele renasce.

No Brasil saiu Novas Bossas, com Milton Nascimento e o Trio Jobim (Paulo e Daniel Jobim e Paulo Braga) e um cuidado harmônico que anda raro por aqui. Cais, Inútil Paisagem e Samba do Avião são pontos altos, em que a voz de Milton faz falsetes nos momentos certos, com grande efeito estético.

Do ano passado, mas que acabo de ganhar de uma amiga, vale o registro de River - The Joni Letters, do pianista e arranjador Herbie Hancock, com Wayne Shorter ao sax, Dave Holland ao baixo e as vozes de Corinne Bailey Rae (a quem cabe River, uma versão para o topo da lista), da própria Joni Mitchell, de Leonard Cohen e, dando uma dimensão de seu prestígio, da brasileira Luciana Souza.

RODAPÉ

Coincidentemente, alguns dias depois de ter escrito a coluna sobre o livro de James Wood, How Fiction Works, na semana passada, recebi Para Ler Como Um Escritor (Zahar), livro de 2006 de Francine Prose editado agora no Brasil. Mas Prose está para Wood como aglomerado para madeira. Ela é professora de ''redação criativa'' e, ainda que duvide da possibilidade de ensinar a escrever, seu livro tem esse tom pedagógico de manual, daí o número de citações e chavões. Embora ela também fale dos detalhes eletivos de Flaubert e da terceira pessoa em Dostoievski e também cite as histórias de Chekhov e A Morte de Ivan Ilitch de Tolstói como modelares, Wood - a quem faz referência ao tratar da obra de Julien Green, excelente ficcionista pouco lido no Brasil - tem muito mais sacadas, inclusive a de combater preconceitos comuns como à repetição de palavras e ao escritor rápido.

POR QUE NÃO ME UFANO

Se algum político brasileiro demonstrasse um décimo do discernimento de Barack Obama não só sobre a questão racial (pois as ''compensações'' que ele critica já viraram quase unanimidade em nossas universidades), mas também sobre a necessidade de separar amizade e pensamento (sim, é possível ser amigo de quem se discorda seriamente), para não falar de sua serenidade intelectual, eu ainda assim não me ufanaria. Ufanismo é discurso de político.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

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