Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Claro enigma Roberto Pompeu de Toledo

Veja - 24/01/2011


Duas hipóteses benignas, existentes desde que a mente humana tomou
forma, conduzem a um enigma. sempre que ocorrem desastres naturais
como o que assolou a Região Serrana do Rio de Janeiro. A primeira
hipótese é a de que Deus existe. A segunda, mais benigna ainda, a de
que Deus, Ser Superior que é, só pode ser dotado dos mesmos atributos
de delicadeza, generosidade e correção que, somados, resultam naquilo
que os homens entendem por "bondade". Se Deus existe, e se é bom, como
explicar castigo como o infligido a Nova Friburgo, Teresópolis e
Petrópolis, ou antes ao Haiti, ou antes do Haiti à costa asiática dos
tsunarnis, ou muito antes ainda a Lisboa. por ocasião do devastador
terremoto de 1755?

Ainda no caso de Sodoma e Gomorra, vá lá, a Bíblia explica direitinho.
Eram cidades habitadas por pecadores: logo, mereceram o castigo. Mas,
no grosso das ocorrências, como explicar que sejam atingidos
igualmente inocentes e culpados, virtuosos e pecadores? Voltaire, um
dos vários filósofos do século XVIII impressionados com o terremoto de
Lisboa, escreveu, refutando as teses ,de vingança divina: "Lisboa, que
não existe mais, teria mais vícios / Que Londres ou Paris, mergulhadas
nas delícias? / Lisboa está em ruínas, enquanto se dança em Paris".

Difícil, para quem busca respostas além das pedestres questões
climáticas e geológicas, ou das repisadas causas políticas e sociais,
atinar com uma razão para as catástrofes da natureza. No caso
presente, porém, bem consultadas as estrelas e bem analisados os
rastros dos pássaros, a resposta é clara: a catástrofe veio para nos
lembrar de quem somos. Existem países em que casas despencam morro
abaixo e países em que isso não acontece. Países em que bairros
inteiros desaparecem sob a lama e países em que isso não acontece.
Países em "que pessoas se aboletam em áreas de risco porque não têm
alternativa e países em que isso não acontece. Nós pertencemos à
classe de países em que casas despencam morro abaixo, bairros
desaparecem sob a lama e pessoas se aboletam em áreas de risco porque
não têm alternativa.

Avisos do céu são desferidos em pontualíssimos momentos. O maior
desastre natural da história do Brasil deu-se na hora mesma em que se
encerrava o mais enfatuado governo da história do Brasil. As porras da
prosperidade haviam sido escancaradas. A pobreza dera lugar aos
prazeres do consumo. O presidente dispensara lições de governar que
humilhavam todos os antecessores. O aviso "veio nos recolocar em nosso
lugar. Ou seja, o 73°, na última medição do Índice de Desenvolvimento
Humano, atrás de pobretões da Europa do Leste como a Romênia, a-Sérvia
e a Bulgária da família Rousseff, assim como, na vizinhança, do Chile,
da Argentina, do Uruguai, do México, da Costa Rica e ate do Peru.
Sorte nossa que na apuração do IDH, além do PIE per capim, da
escolaridade e da expectativa de vida, não entra o critério das casas
que desabam dos morros: Se assim fosse, pior ainda seria nossa
situação. A jactância ignorante e indigente do governo findo teve,
nestes anos todos, o reforço externo do estratagema que, em pane por
esperteza de especuladores internacionais, passou a chamar de
"emergentes" os países que antes eram no máximo "em desenvolvimento",
e a criar o grupo de quase potências identificado pela sigla Bric. Tal
moda é fraudulenta. Ela sugere que um país possa ascender à primeira
divisão sem levar junto a população. Na semana passada, foi
apresentado como cúpula entre as duas maiores potências mundiais o
encontro entre os presidentes dos Estados Unidos e da China. Não. A
China é apenas a segunda economia do mundo, nada mais do que isso. E a
economia bruta é um pobre critério para medir o desenvolvimento dos
povos. Em IDH, critério melhor, a China vem em 89° lugar, atrás até do
Brasil. Os EUA vêm em quarto. Cúpula entre eles por enquanto ainda
equivale a um Flurninense x Olaria. Pelo menos, a China já alcançou a
compreensão de que não vai adiante sem trazer seu povo, e investe
pesado nele. No último Pisa. a avaliação do estado da educação mundo
afora, os estudantes chineses obtiveram o primeiro lugar em todas as
três áreas consideradas - leitura, matemática e ciência. Já os
brasileiros, entre os 65 países pesquisados, estão na rabeira nas três
- 53° lugar em leitura, 57° em matemática e 53° em ciências. Os
desígnios divinos que, ao longo dos séculos, se procuram decifrar,
quando se desencadeia a fúria dos elementos, no caso da Serra
Fluminense são bastante claros porque não há neles nada de divino. As
responsabilidades pela catástrofe se situam aqui embaixo mesmo

Quem é desenvolvimentista - Maílson da Nóbrega

Veja - 24/01/2011

Voltou à baila o termo desenvolvimentista. O Banco Central, agora supostamente sintonizado com o Ministério da Fazenda, teria adquirido essa qualidade. Fala-se em uma nova política econômica. O presidente do lpea comemorou "umaarticulação entre Fazenda e BC que antes não havia balela.

A realidade é outra. As medidas cambiais recentes do BC foram gestadas
sem orientação de fora. Seu foco é prudencial, embora possam inibir a valorização do
real. Nenhum outro órgão dispõe de igual experiência e pessoal qualificado nessa
área. Confirma-se sua autonomia operacional.
O desenvolvimentista, óbvio. é a favor do desenvolvimento (quem não é?). Costuma
defender propostas baseadas em dirigismo estatal e fone intervenção naeconomia.

Para muitos da tribo, a redução dos juros depende apenas de coragem do Banco Central ou de uma ordem do presidente da República.

Declarar-se desenvolvimentista implica boa dose de arrogância. Como denominar os que duvidam das suas propostas? Seriam contra odesenvolvimento? Já se viu alguém levantar a bandeira do arraso?
Poderia ser chamado "atrasadista", algo igualmente extravagante.
O foco no desenvolvimento é relativamente recente: menos de dois
séculos. A renda per capita estagnou por milênios até começar a crescer quase continuamente
no princípio do século XIX particularmente na Inglaterra. Desde então, busca-se
entender por que uns países enriquecem e outros não. Hoje conhecemos as fontes desse
processo, mas é difícil explicar como se chega a elas. Sabese que o desenvolvimento pressupõe a acumulação de capital físico e humano, e ganhos permanentes de produtividade. Esta depende da acumulação de conhecimento, que depende da educação. A inovação é crucial.

Mais recentemente, percebeu-se que as instituições políticas e econômicas são essenciais para explicar o mistério do desenvolvimento. Elas incluem as crenças da sociedade e aliberdade de imprensa Instimições alinham incentivos para investir,inovar e assumir riscos típicos do sistema capitalista.
Direitos de propriedade são peça fundamental da engrenagem. Ao contrário do que pensavam filósofos como Marx e Rousseau, a propriedade não é a causa de todos os males. Ela é inerente ao seI humano. "Depois de os bebês aprenderem a falar "mamãe" e "papai". a terceira palavra que se incorpora ao dicionário deles costuma ser "meu".
Na Inglaterra do século XVII, ideias passaram a gerar direitos de propriedade. Uma revolução. Edward Coke inspirou a primeira lei de parente (1624). O filósofo lohn Locke a reforçou ao mostrar que trabalho se equiparava" a . propriedade.

Adam Smith disse que o direito de propriedade sobre o trabalho "é o mais sagrado e inviolável".
Antes, a noção de propriedade era outra. Naquela época, praticamente tudo o que tivesse
valor vinha da terra. Daí associar-se propriedade a imóvel. O reconhecimento de parentes
criou fontes infinitas de geração de direitos de propriedade. A RevoluçãO Industrial deve
muito à onda de inovações decorrente das respectivas leis.

Sorte e azar estão igualmente presentes no processo de desenvolvimento. Os Estados Unidos. herdeiros da cultura e das instituições propícias ao. desenvolvimento capitalista, tiveram a
sone de comar com um país riquíssimo em recursos naturais. O Brasilteve a sorte de não eleger o Lula de 1989, radical e com visõeseconômicas equivocadas.

As condições para o desenvolvimento se formam ao longo de anos.
Derivam de fatores como liderança. construção institucional continuada, expansão emelhoria da qualidade da educação. redução do potencial de corrupção, enfim, da formação do
ambiente que propicia o investimento, a preparação do capital humano e a inovação.
O Brasil caminha nessa direção. Entre os seus enormes desafios está a valorização do direito de propriedade, sem qualificações. Aqui, esse direito depende da "função social da propriedade", condição inexistente em países que deram certo. A legislação estimula o esbulho. Por isso, a tolerância com os crimes do MST.

O desenvolvimento não é tão simples como sugerem muitos desenvolvimentistas. Deve ser buscado com um misto de ousadia e prudência. Mai todos somos desenvolvimentistas. e
não apenas eles.

"Todos somos desenvolvimentistas, e não apenas quem se define assim.-
Já se viu alguém levantar a bandeira do atraso? Poderia ser chamado
"atrasadista", algo igualmente extravagante

domingo, janeiro 23, 2011

Cantando pela serra do luar:: FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SÃO PAULO - 23/01/11

E me pergunto, quando escrevo esta crônica, de que afinal somos feitos, se de matéria ou de memória

NA ABERTURA da exposição comemorativa de meus 80 anos, no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, fui surpreendido por um coral de jovens estudantes que, postado na escadaria, à entrada do museu, começou a cantar "O Trenzinho do Caipira". Após o primeiro momento de espanto, passei a cantar com eles, baixinho, claro, pois não desejava ser ouvido; é que não resisti ao impulso de participar daquele momento.
Não havia ali, a meu ver, um homenageado e, sim, uma encantada confraternização.
Mas, por incrível que pareça, enquanto cantava e me confundia com as demais pessoas ali presentes, veio-me uma constatação: a do contraste entre aquele momento e o outro, distante 40 anos, quando pus letra na tocata da "Bachiana nº 2", de Villa-Lobos.
Muita gente conhece a história do "Poema Sujo", escrito por mim em Buenos Aires, em 1975, mas o que constatei, de súbito, nesse momento de confraternização, foi o contraste entre a alegria de agora e o desamparo em que me encontrava naquele apartamento da avenida Honorio Pueyrredón, certo de que o mundo desabava sobre minha cabeça.
Não pretendo me valer desse pretexto para falar de mim mesmo ou do "Poema Sujo", de que a letra do "Trenzinho" é parte. Não é isso. A surpresa me arrebatou, ali, à entrada do museu, diante daqueles meninos e meninas que o cantavam, reacendendo, inesperadamente, em mim, a manhã de maio de 1975, quando, como quem faz a última coisa possível, escrevia aquele poema que, mal sabia eu, iria tornar-se o mais conhecido e traduzido dentre os tantos que escrevi na vida.
Assim foi que, subitamente, estou de volta àquele momento. Estou desgastado e ferido pelos anos de exílio, pelas perdas, pelas decepções e derrotas. A família, os amigos, o Rio de Janeiro, com suas praias e montanhas lilases, estão fora de meu alcance, e não me conformo com isso. É que, então, ali, era apenas um poeta às voltas com um poema que inventava -a única alegria possível.
Agora, em 2010, diante do coral, no hall de entrada do MNBA, o tempo se abre como um abismo e me suga e me atira, outra vez, para 40 anos atrás, naquele instante esvaído no curso da vida, mas que a cantiga do coral me traz de volta, sem que ninguém ali o perceba, cantando que estão ou encantados com o canto, senão eu que, não obstante, continuo a cantar com eles.
O presente é canto vibrante mas, dentro dele, estou eu-outrora, diante da máquina de escrever Lettera 22, inventando o "Poema Sujo". E é nesse momento do poema, quando lembro das viagens de trem que fazia com meu pai, que a "Bachiana nº 2" invade o quarto (a "Bachiana" que, quando ouvi pela primeira vez, me fez lembrar daquelas viagens e que agora, ao contrário, vem trazida pela lembrança delas). E a letra que, durante 20 anos, tentara escrever, sem o conseguir, escrevo-a então em menos de 20 minutos:
"Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar."
A mesma letra que ouço agora na voz dos garotos, nesse começo de noite em dezembro de 2010. Sim, a mesma, mas outra, pois a que ouvia, escrevendo-a, era quase silêncio, murmúrio que se juntava à melodia de Villa-Lobos tocando na vitrola. E me pergunto, agora, quando escrevo esta crônica, de que afinal somos feitos, se de matéria ou de memória. Mas, veja bem, memória não é passado? Ou não é? Tendo a pensar, fora da lógica aparente, que tudo é presente, todo o vivido, só que, em geral, estamos ocupados demais com o agora para nos darmos conta disso.
De qualquer modo, não poderia nunca imaginar, naquela manhã distante, que aquele murmúrio se tornaria canção, que aqueles versos um dia seriam um canto público na voz de meninos e meninas do meu país, décadas depois, numa noite de alegria e comemoração, quando o que foi sofrimento e desespero se apagou para sempre, pois a própria vida, na sua alquimia, os mudou em festa.
"Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Cantando vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar."

Terroristas::Almir Pazzianotto Pinto

 - O Estado de S.Paulo

Os brasileiros jamais aderiram ao terrorismo. Bakunin, para quem "o impulso de destruir é também um impulso criativo", não fez escola entre nós. Influenciou um ou outro pervertido. Chacinar autoridades ou pessoas comuns, detonar bombas na multidão, explodir instalações públicas, como sucede rotineiramente em países conhecidos pela irracionalidade de minorias políticas e religiosas, não integram os nossos costumes. O povo mais de uma vez manifestou repugnância a facínoras insensíveis que, em nome de ideologia extremista, ou por mera propensão homicida, não vacilam em sacrificar homens, mulheres e crianças, em sangrentos atentados a tiros ou à bomba.

Marcelino Bispo de Melo, o soldado que, em 5 de novembro de 1897, ao atacar o presidente Prudente de Morais no cais do Rio de Janeiro, feriu de morte o ministro da Guerra, marechal Machado Bittencourt, e o coronel Mendes de Morais, ou Manso de Paiva, desempregado que, em 8 de setembro de 1915, apunhalou pelas costas o senador Pinheiro Machado, integram o diminuto número de terroristas assumidos da nossa História.

A Primeira República (1889-1930) ficou marcada por episódios de rara violência: a Revolta da Armada (1893-1894); a Campanha de Canudos (1896-1897); a Guerra do Contestado (1912-1916); fuzilamentos e a degola, praticada no Sul como forma de eliminação de adversários políticos e soldados inimigos (a vítima indefesa era posta de joelhos, com a cabeça entre as pernas do carrasco, que com golpe de adaga lhe abria o pescoço). Atos terroristas, todavia, foram poucos e isolados.

Jacob Gorender, autor de Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, descreve o surgimento do terror após 1964, utilizado como instrumento de reação ao regime militar. Em dois capítulos trata da violência dos oprimidos e da resposta sangrenta dos opressores.

A Lei da Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente João Figueiredo, concedeu perdão aos responsáveis por crimes políticos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Tanto os autores do atentado contra o general Costa e Silva, no Aeroporto de Guararapes, em 25 de julho de 1966, quando morreram o almirante Nelson Gomes Fernandes e Edson Regis de Carvalho, chefe do Gabinete Civil do governador de Pernambuco, Paulo Guerra, como os que explodiram carga de dinamite na entrada do quartel-general do II Exército, em São Paulo, em 26 de junho de 1968, provocando a morte do recruta Mário Kozel Filho, ou os assassinos do tenente da Polícia Militar Alberto Mendes Júnior, no Vale do Ribeira, em 10 de maio de 1970, e os militares do Exército que planejaram explodir o Riocentro, em 30 de abril de 1981, foram alguns dos beneficiados pela Lei n.º 6.683. Muitos ganharam a oportunidade de retornar à política, às atividades acadêmicas, ao jornalismo, aos negócios, quase sempre obtendo sucesso.

A legislação, de caráter excepcionalíssimo, justificava-se naquele momento como prova inequívoca do compromisso assumido pelo governo militar com a abertura e o restabelecimento do Estado de Direito democrático. Estava informada pelo objetivo de pacificar a Nação, dividida e traumatizada desde 1964. Em tal circunstância, procurou-se passar a borracha no passado, isentando de culpa, e do cumprimento de pena, réus civis e militares, subversivos e torturadores.

Essa rápida, fragmentada e inconclusa digressão histórica se justifica diante do caso Cesare Battisti. Trata-se de indivíduo sanguinário e premeditado que, a pretexto de pertencer a organização anarquista, matou e mutilou inocentes, não em legítima defesa, mas de forma impiedosa, alimentada por instinto inumano. Era de esperar que, ao ser ouvido no Brasil, o celerado se dissesse inocente, jurasse nunca haver matado, como relatou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que, em mais uma das extravagantes atitudes que o popularizaram, foi emprestar-lhe solidariedade na Penitenciária da Papuda.

Quem tem certa experiência no trato com o assunto crime sabe que nos presídios raramente são encontrados criminosos. Dos encarcerados sempre se ouvirão protestos de inocência, frases chorosas de que não passam de vítimas de erros judiciais. Se se indagar a Fernandinho Beira-Mar os motivos de se encontrar confinado em penitenciária de segurança máxima, não será de estranhar que revele ignorância e afirme que as perversidades que lhe atribuem não são verdadeiras. O criminoso invariavelmente considera-se vítima das desigualdades e despeja sobre a sociedade a culpa por estar condenado à reclusão.

Inocentar Cesare Battisti, como o fez o ex-presidente Lula - cuja incapacidade de entender a grandeza e as responsabilidades do cargo se fez conhecida aqui e lá fora - tem o caráter de anistia individual, extemporânea, em benefício de um criminoso comum condenado à prisão perpétua. O gesto insólito viola tratado celebrado com a Itália, agride o Direito Internacional Público e revela que, em detrimento do Direito italiano, fruto de milenar construção de consagrados juristas, o ex-presidente optou pela Camorra.

O caso Battisti não se presta à construção de filigranas jurídicas. Os fatos são conhecidos: trata-se de criminoso foragido. Fugiu da Itália e também da França, quando o governo deste país determinou que fosse recambiado para Roma, para o cumprimento da pena. Ingressou no Brasil com documentos de identidade falsos. O que mais se faz preciso para que se lhe recuse o privilégio do abrigo?

Liberá-lo significa assumir o encargo de lhe proporcionar, como refugiado político, meios de sobrevivência, mediante recursos do contribuinte. Talvez já se cogite de aproveitá-lo na assessoria do gabinete do senador paulista, em função comissionada de algum órgão público federal ou no Rio Grande do Sul, ao lado do governador Tarso Genro.

ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (TST) 


Mágicas e milagres de Dilma:: VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SÃO PAULO - 23/01/11
Será difícil para governo poupar o que propôs em 2011; plano fiscal de médio prazo é o mais importante


QUASE TODO mundo versado em aritmética dá de barato que o governo federal não deve cumprir a meta de poupança de despesas em 2011, o chamado superavit fiscal primário (receitas menos despesas, excluídas despesas com juros). Ainda assim, não é grande a descrença de que haverá contenção grande de gastos, o que pelo menos vai reduzir a contribuição do governo a uma demanda já por demais aquecida. Além do mais, a dívida pública, considerada em relação ao PIB, deve continuar a cair, embora devagarzinho.
Então, qual é o problema?
Antes de mais nada, note-se que não é bom ter de fazer apertos num ano apenas. O governo vai ter de fazer mágicas e milagres para conter as despesas de modo a atingir até um superavit de 2,5% do PIB, abaixo da meta de 3% do PIB -a estimativa de dificuldades para atingir os 2,5% é do economista Mauricio Oreng, do Itaú, em estudo detalhado a respeito dos problemas fiscais de 2011. Quando há mágicas e milagres, a qualidade do gasto cai. Programas e investimentos por vezes são interrompidos ou atrasados.
Por que vai ser difícil atingir a meta de superavit? Segundo Oreng:
1) a arrecadação do governo federal não vai subir tanto em relação ao PIB quanto o estimado no Orçamento (será menor a "elasticidade-PIB" da arrecadação). Segundo os economistas do Itaú, para cada aumento de 1 do PIB, a receita deve crescer 1,4, e não 1,9, como o estimado no Orçamento. No ano passado, por exemplo, o PIB deve ter crescido 7,6%; a receita cresceu 9,85% (a elasticidade foi de 1,3). Essa deve ser a tendência nos próximos anos;
2) a economia deve crescer menos (4,3%) do que o previsto no Orçamento (5,5%) -é uma estimativa mais incerta, mas em termos de Orçamento é melhor ser conservador;
3) as receitas não tributárias não devem ser tão altas. Etc.
O aumento do gasto previsto pelo Congresso é muito alto: 11,6%, maior mesmo que o da liberalidade de 2009 e de 2010 (9,5%), de política fiscal (gastos públicos) "anticíclica" (com o fim de evitar recessão, que, aliás, acabou em 2009).
Dados esses pressupostos, Oreng estima que o governo precise evitar gastos de R$ 83 bilhões (contigenciando gastos previstos no mais uma vez fictício Orçamento; transferindo despesas para 2011. Em suma, não gastando quase nada a mais que em 2010). É um "corte" de 2% do PIB, o equivalente a 38% de todas as despesas "livres" (discricionárias) do governo. Entre 2003 e 2010, a média do "congelamento" de gastos foi de 15%. No duro ano de 2003, o de estreia de Lula e de crise feia, a contenção foi de 21%. Há outros empecilhos, mas o grosso do problema está aí.
Oreng diz que o governo dá sinais de se esforçar para dar conta do recado, esforço, porém, infrutífero (considerada a meta oficial). Mas a questão maior não é essa. Como diz o estudo, "...o problema provavelmente não deve ser resolvido em apenas um ano". O crescimento da receita de impostos deve aos poucos convergir para o crescimento do PIB (não será possível mais fazer "ajustes" com receitas extras); faz tempo não é mais conveniente aumentar impostos, já altos demais. Ou seja, mais do que acertar os décimos da meta deste ano, o problema mesmo é conceber um plano de médio prazo que faça o Estado caber eficientemente no tamanho da economia.

É um rio de dólares:: Celso Ming

O Estado de S.Paulo - 23/01/11

Apenas nas três primeiras semanas do ano, as empresas brasileiras captaram no exterior US$ 10,3 bilhões. E mais operações desse tipo estão sendo engatilhadas.

O Ministério da Fazenda enfia um IOF de 6% e outras trancas para evitar a entrada de US$ 2 bilhões ou US$ 3 bilhões mensais de capitais interessados em morder a diferença de juros e, no entanto, até aplaude a entrada de capitais 3 a 5 vezes mais caudalosos que também produzem estragos no câmbio.

Isso é retirar um cisco do olho e deixar lá um cavaco inteiro. O ministro Mantega reconhece que a instituição do IOF não está sendo suficiente para segurar o dólar. Mas argumenta de forma duvidosa: se não fosse o IOF de 6% sobre a entrada de capitais destinados à renda fixa, diz ele, a cotação do dólar teria desabado ainda mais. Vá saber...

Pode-se argumentar o contrário. Se é especulativo, esse capital entra, tira proveito do que tem de tirar e logo vai embora. Nessa trajetória, o tanto de valorização do real que produz na entrada, desfaz logo depois, na saída. Enfim, não serão intervenções casuístas que evitarão a indesejada valorização do real.

Também não se pode impedir que as empresas brasileiras se abasteçam no mercado internacional de crédito. A hora é de aproveitar a enorme liquidez existente lá fora e a boa percepção que o credor tem sobre a economia do Brasil. A Petrobrás não acaba de puxar para dentro US$ 20 bilhões obtidos com a subscrição de ações novas? Pois isso é uma canequinha comparada com os US$ 220 bilhões de que necessitará até 2014 para desenvolver os projetos do pré-sal. De muito mais precisarão para tocar seus investimentos e reforçar seu capital de giro não só a Petrobrás, mas grande parte das 100 maiores empresas brasileiras.

A pletora de capitais demandada pelo setor produtivo brasileiro é impressionante. Há o pré-sal já mencionado e tudo o que vem com ele, em produção de sondas, navios, oleodutos, etc. Tem os projetos da Copa do Mundo, da Olimpíada, o trem-bala, as hidrelétricas, o resto do PAC. O afluxo de capitais tende a ser gigantesco. Não dá para conter a avalanche com rodo e pano de chão do ministro Mantega.

A enorme diferença entre os juros internos e externos é mesmo um problema. Não só pela forte entrada de capitais que proporciona, mas também pela enormidade que segura no País. Está claro que é preciso derrubar corajosamente os juros. Mas, para isso, é preciso que o ministro leve a sério o roteiro que ele mesmo traçou no início de janeiro: "É garantir austeridade nas contas públicas para abrir espaço para a queda dos juros". Por enquanto, além da retórica, nada aconteceu.

Apenas a derrubada dos juros não será suficiente para conter o afluxo de moeda estrangeira, especialmente se o governo está dividido entre estimular sua entrada e, ao mesmo tempo, restringi-la. O Brasil vai escalar as tabelas de classificação de risco e, à medida que crescer no mundo a percepção de que é uma economia com enormes perspectivas, mais capitais afluirão para cá.

Para assegurar competitividade para o produto brasileiro numa paisagem nítida de valorização do real, sobra para o governo Dilma ação vigorosa destinada a baixar o custo Brasil. O roteiro é conhecido: além da derrubada dos juros, vai ser preciso reduzir a carga tributária, construir uma infraestrutura confiável, dar eficiência ao Judiciário e fazer as reformas que há anos estão paradas.

Cadê a oposição?
Até agora ninguém conseguiu ouvir contestação às políticas praticadas pelo governo. A oposição não atua e não tem discurso, provavelmente também porque não tem opinião formada sobre nada. As únicas cascas de banana que aparecem no caminho de Dilma estão sendo atiradas pela sua própria base política.

O desafio da China:: Sergio Amaral

O Estado de S.Paulo - 23/01/11

A emergência econômica da China é uma realidade e o sinal mais forte de que caminhamos para um mundo novo, que muitos já chamam pós-ocidental. A emergência da Índia, ainda incipiente, mas igualmente relevante, reforçará o deslocamento do centro dinâmico da economia mundial para a Ásia.

Para nós a China é, ao mesmo tempo, uma oportunidade e uma ameaça. Em 2010, esse país foi o principal mercado para as exportações brasileiras e o principal investidor no Brasil. As exportações atingiram US$ 30 bilhões, enquanto as importações subiram para US$ 26 bilhões.

Mas a qualidade do intercâmbio deixa a desejar. Em 2009, os produtos básicos representaram 77% das exportações. Do lado chinês, ao contrário, mais de 95% das exportações foram de bens industrializados, que incorporam mais valor, geram mais empregos e melhores salários. A responsabilidade é, em boa medida, nossa. É o chamado "custo Brasil". Como é possível concorrer com o produto chinês, se a taxa de juros aqui é a mais alta do mundo, enquanto a da China é negativa? Quando, entre nós, a carga tributária chega perto de 40% do produto interno bruto (PIB), enquanto a deles está abaixo de 20%? Se a nossa infraestrutura é deficiente e a da China, supermoderna? Enfim, quando o real está apreciado, enquanto o yuan está desvalorizado?

Mas existem outras razões para a redução relativa das exportações industriais. Em certos setores, a China pratica a escalada tarifária, como em relação à soja. Outras vezes estabelece restrições sanitárias injustificadas, como é o caso do frango. E cada vez mais os produtos industriais brasileiros terão de enfrentar a integração das cadeias produtivas na Ásia, em decorrência das dezenas de acordos de comércio e investimentos entre a China e seus parceiros na região.

Do lado das importações, o déficit de competitividade explica em parte o deslocamento de significativos setores da economia brasileira diante de um volume crescente de mercadorias chinesas. Mas, aqui também, outros fatores precisam ser levados em conta: a aceleração das exportações da China, o seu crescente volume e, por vezes, a concorrência desleal, em consequência dos benefícios concedidos às empresas chinesas.

No ano passado a China foi também o principal investidor no Brasil, com mais de US$ 10 bilhões, o que é positivo. Mas o investimento está mudando. Não se trata mais apenas de capitais direcionados para o suprimento de commodities. Hoje a pauta dos investimentos, assim como a das exportações, se diversifica e inclui, cada vez mais, setores de alta tecnologia, como telecomunicações (Huawei) ou transmissão de energia (State Grid).

Os investimentos chineses por vezes não distinguem com clareza o público do privado. Mesmo quando a empresa é privada, a participação do governo no processo decisório e no financiamento pode ser dominante e deixa em aberto a indagação se o objetivo e o modo de operar da empresa refletem objetivos estratégicos do país ou práticas de mercado. Independentemente dessa distinção, o simples efeito dimensão do investimento suscita questões justificadas, que precisam ser avaliadas e, se for o caso, normatizadas, de modo a evitar que a decisão caso a caso gere incerteza para o investidor.

Também do lado dos investimentos brasileiros na China seria preciso maior previsibilidade. A Embraer não recebeu ainda a licença para produzir um avião de maior porte na China. Outras empresas, como a BR Foods, que abriu um escritório em Xangai, poderão perguntar-se se obterão a necessária autorização quando resolverem agregar mais valor às suas exportações ou produzir na China produtos de mais alto teor de processamento.

O desafio da China, assim, não está apenas na peculiaridade e no vulto de seus investimentos ou no volume crescente de produtos importados a um preço substancialmente mais baixo que o do similar nacional. Está em saber lidar, tanto ao nível da empresa quanto do governo, com uma realidade que é nova, diferente e se apresenta como as duas faces de uma mesma moeda: uma promissora, a outra inquietante. Esta realidade não pode ser tratada como business as usual.

Os desafios novos da parceria com a China suscitam algumas reflexões e iniciativas:

Coordenação. A condução do intercâmbio foi corretamente colocada num nível elevado, vice-presidente da República e seu equivalente na China. No plano operacional, no entanto, visões legitimamente diferenciadas entre Ministérios e órgãos de governo tornam mais difícil a convergência de posições, um acompanhamento abrangente dos negócios e a fixação de prioridades para a ação.

Articulação. Também no setor empresarial se manifestam diferenças naturais entre os que priorizam as oportunidades e os que temem as ameaças. É preciso conciliar essas duas perspectivas, inclusive de modo a levar ao governo uma visão convergente, que contribua para uma ação concertada.

A parceria das empresas com o Itamaraty e a Apex tem ensejado ações importantes de promoção comercial. Mas se o objetivo é, como deveria ser, a agregação de valor às exportações, outros órgãos do governo - como o BNDES - teriam uma contribuição a aportar.

Uso adequado dos mecanismos de defesa comercial.

Maior clareza sobre os procedimentos e normas relativos ao comércio e ao investimento, de modo a assegurar maior previsibilidade aos agentes econômicos.

Ampliação do intercâmbio cultural e educativo, de modo a suprir a lacuna de conhecimento recíproco.

A visita da presidente Dilma Rousseff à China, no correr do ano, será uma oportunidade valiosa para entendimentos entre os dois governos que venham a facilitar e impulsionar o intercâmbio econômico, em conformidade com os objetivos fixados no Plano de Ação Conjunta de 2010.

PRESIDENTE DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA, É COORDENADOR DOS CONSELHOS SUPERIORES DA FIESP

Paraíso tropical, adeus:: Gaudêncio Torquato

O Estado de S.Paulo - 23/01/11

De tragédia em tragédia, o Brasil vai apagando das páginas de sua História o mito de paraíso terrestre que aqui se cultiva desde os tempos em que Pero Vaz de Caminha, embevecido com a exuberância das matas, as águas cristalinas dos rios, a beleza das praias, enfim, o jardim paradisíaco habitado por homens pacatos e mulheres nuas fruindo a liberdade do prazer e do ócio, descreveu a el-rei a condição ímpar de uma terra em que "se plantando, tudo dá". É bem verdade que essa terra, "grande e selvagem estufa, luxuriante e desordenada que para si própria fez a natureza", nos termos descritos por Charles Darwin, ganhou de contraponto à imagem de Éden a carranca de um inferno verde. Foi Lévi-Strauss que a pintou como o "ambiente mais hostil ao homem sobre a superfície da Terra". Descrevia o antropólogo o reino horripilante de insetos e artrópodes, picadas de mosquitos, mutucas e miruins, piuns e carrapatos, as aranhas, lacraias e escorpiões, o espectro das moléstias e do calor, que viu e sob o qual padeceu nos grotões de Mato Grosso. Dos idos de 1935-38 para cá, as entranhas nacionais foram sendo ocupadas de modo acelerado, ganhando as tintas da modernidade (e da devastação). E assim o território passou a conviver com as dobras que entrelaçam a majestosa estética de uma maravilha do planeta com cenas aterradoras, fruto da união entre a força da natureza e a incúria humana.

A tragédia que devastou um dos mais bonitos cartões-postais do País - e que pode passar de mil mortos - é a inequívoca demonstração de que, por aqui, o conceito de paraíso se está esboroando. As catástrofes, de tão previsíveis, começam a fazer parte do calendário entre o Natal e a folia carnavalesca. Em 2008, as águas devastaram Santa Catarina, afetando mais de 1,5 milhão de pessoas e 25 comunidades. Em 2002, na mesma Região Serrana do Rio morreram 42 pessoas. No final de 2009 houve o deslizamento de terra na Ilha Grande, em Angra dos Reis, que chegou a matar 30 pessoas. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, refere-se, agora, "à crônica das mortes anunciadas", querendo dizer que os eventos trágicos estavam previstos. Ora, por que Cabral, em vez de usar um surrado refrão, não tomou providências concretas - nas áreas de prevenção e controles - para atenuar os efeitos dos desastres "anunciados"? Desleixo, acomodação, cultura de empurrar com a barriga as questões de fundo? Há 5 milhões de pessoas que vivem em áreas de risco no Brasil. Há planos para administrar os acidentes que podem acontecer nesses espaços? E por que não existem?

A falta de respostas positivas decorre, primeiro, da ausência de clareza sobre a autoridade maior com responsabilidade para cuidar de tragédias. Descobre-se, nas entrelinhas da cobertura midiática, que há uma Secretaria Nacional de Defesa Civil, afeta ao Ministério da Integração Nacional. Trata-se, por suposição, do órgão superior para administrar situações trágicas. Ora, esse Ministério, apesar do rótulo Integração Nacional, foca sua atividade na Região Nordeste, onde estão sediadas as estruturas encarregadas de cuidar de calamidades decorrentes de intempéries. Mas a lógica exige que se produza o mapeamento de ameaças de catástrofes em todas as regiões. É uma ação que demanda um bom aporte de investimentos nos setores de prevenção. Os dados apontam, porém, que navegamos na contramão: entre 2000 e 2010 foram gastos R$ 542 milhões em programas preventivos e R$ 6,3 bilhões nas operações de reconstrução e apoio às comunidades vitimadas. Há falhas também na esfera da articulação. União, Estados e municípios deveriam adotar uma expressão uníssona em matéria de Defesa Civil, até porque essa frente, pelo menos teoricamente, faz parte das estruturas na maioria das municipalidades. Se não há articulação entre os entes federativos, inexistem planos integrados de ação preventiva. Dessa forma, ninguém faz avançar as ideias. O descontrole grassa por toda parte.

Há uma legislação para proteção de encostas, reflorestamento, demarcação de áreas de risco, controle de estabilidade do solo e das construções em assentamentos populares? Há, sim. Mas não é usada de modo adequado. Um jeitinho aqui, uma curva acolá, um trejeito mais adiante conseguem burlar a legislação. Ao final, a incúria abraça-se à acomodação. Portanto, o surto legislativo que poderá advir, a partir da tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro, será ineficaz. Não precisamos de mais leis, e sim fazer que os códigos existentes sejam rigorosamente aplicados. Lembrando o velho Montesquieu: "Quando vou a um país não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois há boas leis por toda parte". E se a lei não é aplicada, de quem será a culpa? Do governante. Nesse caso, cabe avocar sua responsabilização. Não fez cumprir a regra? Punição. Urge que o Ministério Público, por sua vez, ponha a mão na cumbuca, identificando os atores responsáveis pelo desleixo nas instâncias municipal, estadual e federal. No dia em que um governante for flagrado e punido por não cumprir a lei que coíbe construções precárias e irregulares em solo urbano, o Brasil estará dando um passo à frente no terreno da ordem pública.

É evidente que, à margem de providências imediatas e concernentes ao plano de defesa ambiental, os entes públicos carecem privilegiar a infraestrutura de serviços públicos fundamentais, a partir de políticas de habitação, saneamento, sistematização da coleta de lixo, etc. Não há espaço físico que resista incólume à expansão urbana, sem sistemas para absorver as crescentes demandas. Para fechar o circuito do equilíbrio entre a força da natureza e a vida social, cabe prover os espaços com ferramentas tecnológicas capazes de detectar a ocorrência de fenômenos nas áreas de risco. Países que as possuem sofrem danos menores.

Com esta receita o Brasil, quem sabe, poderá resgatar sua imagem de paraíso tropical.

A ameaça inflacionária é maior do que parece::José Roberto Mendonça de Barros

Pretendia iniciar o ano falando do crescimento de longo prazo. Entretanto, a elevação da taxa Selic, decidida pelo novo Copom, bem como os números da inflação de 2010 e das expectativas para o ano corrente me levam a tratar deste assunto.

Desde julho passado tenho mantido um cenário bastante diverso daquele exposto pelo BC e pelo Ministério da Fazenda. As autoridades, frente às elevações da inflação, sempre mantiveram o discurso de que o fenômeno era temporário e que a alta dos preços convergiria, com certa facilidade, para a meta, em virtude dos seguintes fatores: (i) as elevações dos preços de commodities eram choques de oferta que não contaminariam a inflação e seriam naturalmente reduzidas quando a produção se elevasse; (ii) o mundo estaria vivendo uma tendência deflacionária que ajudaria a esfriar as coisas no Brasil; e (iii) a economia brasileira estaria desaquecendo, havendo inclusive folga de capacidade produtiva e que importações facilitadas pelo dólar barato e os novos investimentos resultariam no equilíbrio entre oferta e demanda.

Como resultado, não só não haveria necessidade de se elevar os juros, como seria possível reduzi-los em algum momento de 2011.

Discordei e continuo a discordar de todos estes pontos.

Comecemos com as commodities. Em muitos anos de trabalho, confesso que nunca vi tantos problemas climáticos de diferentes naturezas (seca e chuva, calor e frio) afetando todas as principais culturas (exceto arroz) no mundo todo por prazo tão longo. Ainda hoje temos a seca na Argentina e as inundações na Austrália.

Problemas de produção, baixos estoques e forte demanda de alimentos trouxeram as cotações para níveis semelhantes aos prevalecentes antes da crise. Por tabela, até as cotações do aço foram afetadas pela recente inundação das minas de carvão metalúrgico na Austrália. Está ficando claro que os constantes problemas climáticos resultam do processo de aquecimento global do planeta, que elevam a ocorrência de eventos extremos. Neste caso, os choques de oferta serão muito mais frequentes e seus efeitos secundários sobre a inflação, piores, dada a combinação destes eventos com uma demanda global crescente e baixos estoques no mundo.

Há muito mais fundamento nestas questões do que apenas especulação.

Tendência deflacionária no mundo: já não se fala mais nisso. Ao contrário, a inflação é a grande preocupação nos emergentes e começa a incomodar o mundo rico, até no norte da Europa e o BCE (Banco Central Europeu). Ademais, está cada dia mais claro que a economia americana consolida uma recuperação mais forte; o Fed projeta crescimento de 3% a 3,6% que, na visão da MB, pode chegar a 4%.

Tratei recorrentemente destes assuntos neste espaço: ainda no dia 6 de agosto, escrevi que "o país segue ganhando termos de troca com a valorização das commodities" e que "não existe vento frio vindo do exterior".

Logo depois, no dia 20 de agosto, na coluna "Existe uma desaceleração na economia brasileira?", argumentei que as autoridades estavam confundindo uma certa estabilidade da produção local com desaquecimento, quando na verdade o que ocorria (e ainda ocorre) é uma explosão das importações para atender a uma demanda que crescia a mais de 10%.

Assim, o excesso de aquecimento foi mantido pelo ciclo fiscal eleitoral (que não será facilmente revertido) e pelo mercado de trabalho, resultando numa inflação no custo de vida de quase 6% em 2010. O IGP-M subiu, por sua vez, quase 12%.

Assim chegamos a janeiro. E daqui para frente?

Nossa inflação está muito mais para testar o topo da meta do que caminhar na direção do seu centro neste momento, mesmo após o movimento do Banco Central de elevar os juros em 50 pontos básicos na reunião realizada na quarta-feira passada.

Vejamos primeiro as commodities: como já mencionado, o La Niña ainda está ativo, afetando Argentina e Austrália. Mesmo com os esforços da China para conter a inflação, a demanda de alimentos vai continuar forte, dada a evolução dos salários naquele país. Se considerarmos que a demanda brasileira também continuará forte e que os estoques seguem com níveis baixos, resulta que os preços de alimentação dificilmente se elevarão menos que os 10% observados no ano passado, tal como apontado pelo excelente Luiz Roberto Cunha. Os preços dos metais também estão muito salgados. Finalmente, com a recuperação americana a demanda de petróleo vai crescer (os EUA ainda consomem mais de 20% do total mundial) e o seu preço deve varar facilmente os US$ 100, inclusive pelas dificuldades de elevação da produção global no curto prazo. Em resumo, alimentos, metais e petróleo continuarão incomodando.

Em segundo lugar, nosso mercado de trabalho está muito forte, o que pressiona os preços de serviços, que se elevaram 7,6% em 2010. A falta de mão de obra está atrasando a produção de vários itens (como imóveis) apesar de se pagar salários mais elevados. O mercado está tão apertado que mesmo um crescimento do PIB mais modesto em 2011, perto de 4,5%, manterá os preços dos serviços acima do topo da meta. Finalmente, contratos regulados pelo IGP-M, terão reajustes muito elevados. Em resumo, até o fim do primeiro semestre a inflação anual vai subir antes de cair.

O pior é que começo a ver ligeiros sinais de inflação gregoriana. Manifestações recorrentes de empresários relatam que em 2010 o problema não foi vender, mas entregar. Para tanto, todos os esforços foram direcionados para resolver este gargalo, mesmo que isso implicasse em custos maiores, algum atraso, qualidade eventualmente menor e margens mais estreitas. Iniciado um novo ano muita gente está revendo sua estrutura de custos e reposicionando produtos com novos preços. Isto é grave porque ao contrário do período pós 2005 inúmeros agentes não veem mais o centro da meta como o normal da inflação, mas sim algo maior. Uma indicação quantitativa deste fato está na expectativa dos agentes de mercado para a inflação de 2011. Esta encontra-se em 5,40%, ao contrário do que ocorre desde 2005, quando a expectativa do início do ano era muito próxima do centro da meta.

Este cenário de inflação só será devidamente enfrentado se a política monetária for complementada por um ajuste fiscal significativo, tal como prometido pelo governo. Só o futuro dirá o que de fato ocorrerá na área do gasto. Acredito ser muito pouco provável a ocorrência de um ajuste de envergadura, por várias razões. Como não tenho espaço suficiente para uma análise mais detalhada deste tópico, apenas aponto suas linhas gerais: a conta de pessoal seguirá aumentando por conta de compromissos anteriores, de contratações em curso e pela elevada probabilidade de aprovação de algum dos diversos projetos em andamento no Congresso, como o caso do Judiciário. Ademais, dos R$ 40 bilhões anunciados, pelo menos R$ 23 bilhões são gastos que o Congresso acrescentou ao orçamento sem nenhuma contrapartida de arrecadação. O próprio governo anuncia que não cortará os gastos de investimento. Finalmente, a conta de restos a pagar se elevou para a bagatela de R$ 137 bilhões contra algo como R$ 90 bilhões no ano passado, uma variação maior que o anunciado corte. Como me colocou Fernando Rezende, os restos a pagar viraram uma espécie de dívida flutuante não consolidada, cuja execução não tem qualquer restrição legal.

Encaminhar a inflação para o centro da meta e ancorar as expectativas vai dar muito mais trabalho do que parece.

José Roberto Mendonça de Barros é economista.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

A opção de Dilma pelo varejo :: Suely Caldas

Tem lógica a estratégia pragmática, que Dilma Rousseff parece decidida a seguir, de priorizar o envio ao Congresso de medidas pontuais em substituição a grandes projetos. A experiência dos últimos 16 anos de tramitação de reformas e projetos abrangentes na Casa funcionou na gestão de FHC, mas se esgotou com o tempo e Lula tratou de liquidá-la ao institucionalizar o método toma lá dá cá de saciar o inesgotável apetite de parlamentares oportunistas e aproveitadores para aprovar qualquer coisa. Dilma quer trocar o atacado pelo varejo, de preferência sem muito alarde.

Segundo assessores, ela avalia que a aprovação de grandes projetos envolve custos políticos bem maiores do que os benefícios gerados. Por isso prefere fragmentar, identificar carências pontuais, definir prioridades e seguir passo a passo, em vez de tentar aprovar tudo de uma só vez, arriscando multiplicar a ação de lobbies e de seus sócios parlamentares, prolongar indefinidamente a tramitação e transformar as reformas em monstrengos inúteis. Foi o que aconteceu com as reformas da Previdência de Lula, até hoje não implementada, e a tributária, abandonada. A estratégia do varejo teria também a vantagem de aprovar por lei ordinária e maioria simples matérias relacionadas às reformas, mas que não necessariamente mudam a Constituição, dispensando a maioria de três quintos na votação.

Há lógica no pragmatismo de Dilma. Afinal, ela passou quatro anos assistindo a morrerem projetos de que o País precisa para se modernizar, reduzir o custo da produção e dar eficiência e agilidade ao desenvolvimento. Agora que chegou à Presidência, ela tem pressa, não quer repetir a experiência fracassada. Mas será que seu método vale para tudo? Há contraindicações?

Primeiro, se quer alcançar seu objetivo, Dilma não pode repetir o que foi o mais primário, amador, rasteiro e maior erro político do governo Lula: o mensalão, a propina, a mesada para subornar e domesticar parlamentares. Por ter sido no início do primeiro mandato, o caso e seus desdobramentos inviabilizaram reformas nos oito anos de Lula. A previdenciária não avançou, dependia de regulamentação, e a sindical e a trabalhista morreram nas mãos de Osvaldo Bargas, um sindicalista amigo de Lula, flagrado entre os aloprados. O pouco que restou da tributária não tinha a menor chance de passar no Congresso sem ser ainda mais mutilado. E a política nem sequer foi cogitada. Para aprovar qualquer matéria de porte no Congresso, Lula aceitou a chantagem, a barganha de votos e viciou parlamentares a usar o poder de legislar para levar vantagem e rejeitar outro tipo de convívio.

Mais do que um crime contra o erário, o caso representou um método condenável de cooptar o Congresso que fracassou, mas seu pior legado foi o enorme retrocesso político-institucional.

Para inverter esse retrocesso, contestar esse método, Dilma deve ser dura, firme, decidida e inabalável. É o necessário e o que o País espera de uma mulher na Presidência. Pressões e chantagens virão e ela precisa responder à altura, mostrar que está disposta a não ceder em defesa do interesse público.

Quanto ao método do varejo, da fragmentação de grandes projetos, é uma estratégia que deve ser testada, mas com cuidado, pois há contraindicações, sim. E a maior delas é o risco de montar estruturas para conceber projetos que atraiam lobbies (nesse caso, estendido a ministros e funcionários do alto escalão), que desviem o foco do bem comum para atender a interesses privados. Como ocorreu com as câmaras setoriais, em que grupos de funcionários, sindicalistas e empresários decidiam bondades tributárias e fiscais para si em detrimento do interesse público.

Nesses primeiros dias de governo, Dilma tem marcado sua diferença em relação a Lula. Por enquanto mais em estilo e discurso do que em ações. O adiamento da compra de 36 aviões de caça para a FAB foi além do discurso. Se seguir essa linha na relação com o Congresso e nas nomeações do segundo escalão, a diferença vai provar que ela realmente optou pelo País.

Jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Alerta geral:: Míriam Leitão

Na noite que começou a grande chuva, o prefeito do Rio só dormiu quando foi informado que poderia se desmobilizar. Na cidade, dois mil agentes comunitários receberam um torpedo de que a tempestade vista pelo radar não cairia sobre a capital, tinha se afastado. Se todos os municípios do Brasil tivessem o mesmo sistema, a Região Serrana teria tido tempo de se preparar.

Os sinais do novo radar do Sumaré, a 400 metros de altura, podem ver muito além do Rio, mas o Sistema de Alerta que o Rio está acabando de implantar tem várias fases. Nada é simples; tudo é urgente. O ministro Aloizio Mercadante diz que o país precisa de mais 15 radares. Cada um custa US$1,5 milhão. Os radares são um passo. O outro é o levantamento geotécnico. O terceiro é o fortalecimento da Defesa Civil.

Preparar-se para grandes chuvas e deslizamentos num país continental, que continua acreditando estar livre das catástrofes que atormentam outros países, é o desafio. De fato, está livre de terremotos, vulcões, nevascas, mas 37 grandes eventos climáticos aconteceram no Brasil desde 2000, segundo a pesquisadora da Universidade de Louvain, em Bruxelas, Deborati Guha Sapir, ouvida por Alexei Barrinuevo do "New York Times".

A boa notícia é que o ministro da Ciência e Tecnologia parece convencido que essa é uma parte prioritária do seu trabalho. Os cientistas já vinham pensando nisso, já há estudos avançados sobre o assunto, mas Mercadante e Eduardo Paes mostraram, na entrevista que fiz com eles na Globonews, a convicção de que o item permanecerá na agenda, mesmo após a imprensa parar de falar na tragédia.

Na sexta-feira, os dois se encontraram no Rio para conhecer o moderno centro de operações que Paes vem implantando na cidade nos últimos meses.

- Esse sistema de alerta é a ponta final de um conjunto de ações. Primeiro, sofisticamos o Alerta Rio, que existe há 13 anos, quando compramos um radar próprio. O segundo passo foi montar um centro de operações moderno com meteorologistas, geólogos e Defesa Civil 24 horas por dia, sete dias por semana. O centro opera com um sistema da IBM de previsão de tempo de alta resolução. Antes disso, toda a cidade tinha sido mapeada geotecnicamente num trabalho sofisticado que envolveu até feixes de laser emitidos de helicópteros sobre as áreas montanhosas do Rio. Foi assim que chegamos à conclusão de que há 18 mil famílias em áreas de risco no Maciço da Tijuca - disse o prefeito.

O plano de alerta instalou pluviômetros por toda a cidade e treinou até agora dois mil agentes comunitários que recebem celulares para que possam receber e mandar informações para a central em caso de chuva forte. Mas são 117 comunidades. Na quinta-feira, houve o primeiro teste no Morro do Borel. Ainda há muita coisa a ser feita. Tanta, que o prefeito diz que sabe apenas que está no caminho certo, mas longe do final.

Mercadante tem a missão de olhar o Brasil todo. É aflitivo, porque estamos muito atrasados. O Sistema Nacional de Alerta e Prevenção de Desastres Naturais só pode começar a ser implantado em área que teve mapeamento geotécnico. E no Brasil apenas a Região Metropolitana de São Paulo, pelo IPT, a cidade do Rio, e o Vale do Itajaí foram mapeados.

- Precisamos fazer para o Brasil inteiro isso que o Rio fez. O litoral do Nordeste todo está exposto. Algumas cidades, como Fortaleza, já estão tendo chuvas intensas agora. No ano passado, uma forte inundação atingiu Pernambuco e Alagoas. Em São Paulo, no ano passado foram 79 mortos e 25 mil desabrigados - disse o ministro.

Alguns passos importantes foram dados. O governo comprou um supercomputador, o Tupã, que está no Inpe e vai melhorar em muito a precisão das previsões. Mas tudo tem que estar associado aos radares que precisam ser instalados, mesmo após a integração com a rede de radares da Aeronáutica. Ver com antecedência que uma grande chuva está vindo é uma parte do trabalho. Saber se cairá em áreas com risco de deslizamento e desabamento é outro. Ter um plano viável de evacuação é a terceira parte do desafio. Mas mais importante será corrigir a imensidão dos nossos erros na ocupação do solo urbano. Tudo está errado.

Sabemos isso desde sempre, confirmamos a cada verão que as escolhas que temos feito desequilibraram os sistemas naturais e colocaram milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade.

Esse início de 2011 é uma fratura exposta. Por muito tempo será. Os relatos de quem vai, de quem viu os primeiros momentos, e mesmo de quem chega agora, tantos dias depois, são dilacerantes. Lembram cenários de guerra. As histórias pessoais trágicas se acumulam diariamente nos registros da imprensa. Perdemos nessa grande chuva mil pessoas. Ou mais. Ainda se contam os mortos e se calculam as perdas.

Pela geografia da cidade do Rio e pela insensatez da ocupação descontrolada das encostas, a cidade já viu grandes tragédias. Como a de 1966. Naquela inundação, foi criada a Geo-Rio, que até hoje presta serviços e que tem um banco de dados importante.

Há possibilidades tecnológicas de mitigação dos efeitos de eventos extremos. A esperança de que essa tragédia crie a cultura da prevenção e a política de correção dos excessos pode ser vã, pode ser sonho de uma noite de verão. Mas como disse o "New York Times", o Brasil não é um país pobre, nem um país ao qual falte conhecimento e recursos, mesmo assim pareceu espantosamente despreparado para o que houve na Região Serrana. No Katrina, a nação mais rica do mundo também pareceu despreparada.

O Brasil está numa encruzilhada: ou acredita na urgência e escala a preparação, ou terá de se acostumar com tragédias cada vez piores.

FONTE: O GLOBO

O direito do abutre:: José de Souza Martins

Saques e especulação contra vítimas do desastre ambiental no Rio mostram que, ante a lei da força, a civilização vira quimera

Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções. Vimos isso nesses dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro. Mesmo pessoas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.

Mas do fundo de nossas tradições vem também um dos nossos mais deploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida o saque do que restava das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de outros. Ou o roubo, pura e simples, como fez aquele funcionário da Uerj que, antes de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga. Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação contra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.

O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns, que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte, em face da qual a civilização é uma quimera.

Essa prática tem entre nós raízes culturais profundas. Herdamos da Europa medieval o direito à sebaça, ao saque dos bens dos vencidos. Na história social e política brasileira temos vários episódios e ocorrências desse tipo nas chamadas lutas de famílias. O caso mais emblemático, ocorrido em Dianópolis, no norte do antigo Estado de Goiás, virou enredo de obra clássica da literatura, O Tronco, de Bernardo Élis. Também no cangaço, a sebaça se propunha como um direito do vencedor sobre o vencido. O grave, no caso do Rio, é que a vítima do desastre seja tratada por alguns como um vencido em guerra justa. Essa é a grande anomalia social.

Ainda menino, quando morava na roça, e fazia o curso primário no Grupo Escolar Pedro Taques, em Guaianases, na periferia de São Paulo, mais de uma vez vi multidões carneando nos pastos bois e vacas que haviam morrido por ingestão de ervas venenosas, o gado ervado, ou picados de cobra. Bastava que alguém visse um urubu solitário voando em círculos, bem alto, que as mulheres saíam de casa com facas e bacias em direção àquele ponto. Amontoavam-se ao redor do animal, numa pacífica divisão do trabalho, para abri-lo e cortar os pedaços do que era a única carne que comiam de vez em quando. Deixavam para as aves de rapina apenas as vísceras,por serem, diziam, as partes em que o veneno se localizava. Nunca o dono do gado se opôs a essa prática.

O saque das mercadorias de caminhões acidentados, mesmo dentro das cidades, reproduz, revigora e amplia esse direito popular e antigo. O dono perde o direito de propriedade em relação aos seus bens a partir do acidente. São muitas as evidências desse primitivismo também em relação aos mortos, como a indicar que o direito aos bens de alguém cessa quando esse alguém morre, os bens caindo em comisso como uma espécie de bem público que entra no circuito de reapropriação privada. Em outras sociedades, essas formas primitivas de direito foram banidas e superadas pelas revoluções sociais e políticas. Aqui, historicamente as coisas foram diversas. A superficialidade das mudanças sociais sempre facilitou a agregação do direito velho ao direito novo, traço profundo da nossa cultura política da conciliação. Os saques e a especulação econômica contra as vítimas sobreviventes do desastre ambiental na região serrana do Rio de Janeiro nos mostra a vitalidade entre nós do direito do abutre a se nutrir da carniça das tragédias sociais.

José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de a Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).

FONTE: O ESTADO DE SÃO PAULO/ALIÁS

O resgate da elite:: Clóvis Rossi

O leitor Heli Roberto da Silva escreve para descrever a reação de sua filha de 18 anos quando Fátima Bernardes anunciou, no "Jornal Nacional" do dia 14, que "os alunos que moram nas cidades do Estado do Rio afetadas pela enchentes poderão se inscrever no Sisu acessando em lan house, de graça".

A reação da filha: "pai, esse povo [o do governo] tá brincando. Acessar internet em lan house como, se em algumas cidades a energia elétrica nem foi totalmente restabelecida, os telefones funcionam precariamente e a pessoas de lá têm, no momento, outras prioridades?".

Comentário do pai, técnico em contabilidade de 46, morador de Formiga (MG):

"Noto com preocupação o descrédito das autoridades políticas. A sociedade não acredita mais na mediação política entre ela e os meios de solução dos problemas que a afligem. Há uma tendência crescente e, quem sabe, até majoritária de que sozinhos resolveremos nossas mazelas e carências".

Heli lembra "o protagonismo assumido pelos voluntários nos trabalhos de socorro, resgate e assistências às vítimas da catástrofe da região serrana do Rio", o que, acha ele, "é o exemplo acabado e eloquente de que o Estado brasileiro, se é que um dia existiu, está falido, despreparado, mal gerido, incapaz de reagir rapidamente a uma situação extrema".

O leitor passa a resgatar o sentido de "elite" e lamenta que "a esquerda tenha amaldiçoado e deturpado o vocábulo, a ponto de transformá-lo em anátema.

Pergunta Heli: "Se elite é o melhor que uma sociedade ou um grupo é capaz de produzir, onde está nossa elite? Por que os melhores não se sentem atraídos para o serviço público? É ela quem deve nos representar, nos conduzir, apontar caminhos e discutir soluções, liderar o debate, os grandes temas. Está faltando política".

Tem razão, Heli. Está faltando política e está sobrando politicalha. O mundo político, quintessência da elite, está a serviço dele próprio.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Dias piores virão:: Dora Kramer

A propósito da disputa entre os dois principais partidos da aliança
governista, o ministro da Previdência, Garibaldi Alves, admitiu na
semana passada - em plena vigência da trégua combinada entre PT e PMDB
até o início de fevereiro - que a relação entre os dois partidos não
tem sido "fácil".

Até aí, apenas corroborou a evidência dos fatos.

Em seguida, porém, fez um prognóstico tão distante da realidade e da
capacidade de avaliação acumulada em décadas de experiência política,
que soou como ironia. "Não acredito que os conflitos se agravem, vem
aí o novo ano legislativo e a tendência é amenizar."

A referência ao "novo ano legislativo" faz algum sentido, mas tem
prazo de validade. A chegada dos novatos de fato pode reduzir a tensão
e amenizar as pressões da bancada "velha" cheia de vícios e de
contenciosos acumulados.

Mas não modificará a natureza do partido. Assim como o PT não mudará
sua visão das coisas: a de que o PMDB bem ou mal tem muito a perder e,
portanto, sempre tenderá a recuar. Por essa avaliação, o parceiro deve
ser contido por insaciável. "Se dermos a eles 90% do governo, ainda
são capazes de reclamar", diz um ministro.

É verdade, mas há um detalhe essencial: o PMDB não é um partido
disciplinado nem disposto a pagar qualquer preço eternamente sem
reagir. Michel Temer, mesmo sendo sido indicado vice-presidente da
República em uníssono, precisa administrar permanentemente a tropa
para não perder sustentação interna.

Recuou agora porque a batalha da comunicação estava perdida, mas
registrou o gesto do governo como uma tentativa de afirmação de
autoridade exclusivamente em cima do partido, como se nas outras
legendas, PT inclusive, não houvesse questionamentos de conduta e
fisiologismo desenfreado.

O revide, ponderam dirigentes, não pode ser dado de maneira
barulhenta. "Isso é papel da oposição." O dos peemedebistas será, mais
adiante, escolher um assunto de apelo popular, mas não do interesse do
governo de firmar posição no Congresso.

O governo já deixou as reformas de lado, mas sempre haverá uma agenda,
uma investigação, uma convocação a abrir campo para a atuação do PMDB
no Congresso, onde é forte.

E é aí onde se darão as batalhas e se expressará a tensão,
contrariando o prognóstico otimista (ou irônico?) feito por Garibaldi
Alves de que dias melhores virão. Não há risco.

Bandeirantes. Alguns tucanos simpatizantes de José Serra reclamam, mas
o propriamente dito não está nem um pouco insatisfeito com a montagem
do governo Geraldo Alckmin. Serra e o governador de São Paulo estão
afinados, inclusive para se ajudar mutuamente.

Eleitoral e partidariamente falando. Serra não decidiu ainda o que
fará da vida. De imediato, pois em médio prazo será candidato ao
governo de São Paulo ou a presidente outra vez.

O caminho para chegar lá pode passar ou não pela presidência do PSDB.
Depende do que conferir mais liberdade para fazer o debate de posição.

Novo modelo. Fala-se, até com ênfase, no governo Dilma Rousseff em uma
mudança nas relações com os movimentos sociais. Não se especificam
ainda quais, mas diante da curiosidade de um interlocutor, um ministro
muito próximo da presidente rebateu enigmático depois de ter dado a
pista: "E você acha que está bom, que não precisa mudar?"

Mais não foi dito, numa demonstração de que as mudanças não são para
ser anunciadas e sim executadas.

A reação agressiva das centrais sindicais por não terem tido da
presidente tratamento de portas abertas ao qual estavam acostumadas
com o antecessor parece indicar que já sentiram o aroma de
distanciamento no ar.

Correção. Os ex-governadores de Minas Itamar Franco e do Paraná Jaime
Lerner informam que não recebem aposentadorias dos Estados. Os nomes
constavam dos dados passados à OAB.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

O voto em discussão:: Merval Pereira

Uma reforma no sistema eleitoral à guisa de reforma política está
sendo gestada nos bastidores do futuro Congresso, e essa discussão vem
para valer já no começo da nova legislatura. PT e PMDB vão voltar a
defender o voto em lista fechada, o que daria às direções partidárias
o poder de escolher quais seriam os candidatos, e em que lugar eles
apareceriam na lista oficial.

Não é à toa que os dois maiores partidos do país, detentores das
legendas preferidas dos eleitores, defendem essa modalidade.

Mas os políticos que temem a ditadura dos partidos vão novamente sacar
um argumento poderoso, que inviabilizou a aprovação do voto em lista.
Defenderão junto ao eleitorado que a medida impede que o povo escolha
diretamente seu candidato.

Há ainda uma questão política apimentada na retomada do debate: por
que o PT insiste tanto na defesa do voto em lista, além do fato de ser
um partido hierarquicamente estruturado e bem montado em todo o país?

A adoção do voto em lista fechada é a única maneira de implantar o
financiamento público de campanhas eleitorais, que seria, na verdade,
o grande objetivo da cúpula petista.

Isso porque a tese de defesa do mensalão é que o dinheiro que circulou
entre os políticos era de caixa 2 para a campanha eleitoral, porque o
sistema eleitoral em vigor praticamente conduz a esse tipo de
procedimento.

Como o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar o processo do
mensalão ainda este ano - caso em que os 40 indiciados, inclusive o
ex-ministro José Dirceu, são acusados de terem montado ou participado
de um vasto esquema de corrupção para compra de votos no Congresso -,
o PT e seus aliados teriam para se defender um bom argumento na
mudança do sistema de financiamento de campanhas.

Tanto é assim que a única mudança que se pretende fazer é no sistema
eleitoral de escolha de deputado e vereador, mantendo-se o sistema
proporcional. Os demais cargos são disputados em pleitos majoritários.

O deputado federal Miro Teixeira, um estudioso dos sistemas
eleitorais, e um dos principais opositores do voto em lista fechada
desde o primeiro momento em que ele foi colocado em discussão, defende
que qualquer que seja o sistema eleitoral, tenha que obedecer ao voto
direto do eleitor.

As dificuldades políticas para aprovar o voto em lista estão fazendo
com que cresça entre os parlamentares que querem mudar o sistema de
votação a proposta do voto distrital.

O PSDB defende o distrital puro, considerando que o misto - onde uma
parte dos deputados continua sendo escolhida pelo voto proporcional -
é de difícil entendimento para o eleitor médio.

Já o PP está defendendo o chamado "distritão", onde cada estado se
transforma em um grande distrito, e os mais votados são eleitos.

O que dificulta a aprovação de sistemas eleitorais que adotem a
divisão dos estados em distritos é o desequilíbrio na representação
popular, com um distrito de 800 mil eleitores em São Paulo e outro de
oito mil no Amapá.

O eleitor dos grandes centros ficaria em desvantagem, seu voto valendo
menos do que o do eleitor de um pequeno estado.

Tendo em vista o pluripartidarismo brasileiro, há também o risco de a
definição da vontade das maiorias ser uma tarefa complexa e polêmica.

Com 21 partidos disputando a eleição em um distrito para uma vaga,
como o eleito representará a maioria?

Cairíamos na contradição de dizer que um sistema majoritário elege um
candidato que tem apenas 15% do eleitorado. A não ser que a eleição
distrital fosse disputada em dois turnos.

No entanto, o voto distrital tem, entre suas vantagens, a de abrir ao
eleitor a possibilidade de trabalhar contra um candidato, o que no
atual sistema brasileiro simplesmente não existe.

As vantagens do sistema distrital majoritário são muitas, segundo os
formuladores do projeto: é simples e de fácil implantação; incentiva a
participação do eleitor, que exerceria maior vigilância e fiscalização
sobre o representante eleito do seu distrito.

Cada partido só poderá apresentar um candidato por distrito, reduzindo
drasticamente o número de candidatos nos estados e no país.

Além disso, o candidato concentrará sua campanha no distrito ao qual
concorre, tendo fim as campanhas eleitorais milionárias em que os
candidatos, no sistema atual, se veem obrigados a fazer campanha em
todo o estado.

O sistema do distritão tem a vantagem de equalizar os sistemas
eleitorais, pois todas as demais eleições já são majoritárias.

E evita a distorção de eleger deputados e vereadores com poucos votos,
por causa da legenda, ou pela coligação.

O distritão até resolve um problema de nosso pluripartidarismo: os
partidos deixarão de ficar enchendo as chapas para amealhar votos para
a legenda e, com isso, ganhar mais cadeiras. Condensa o número de
candidatos e acaba com as coligações. Haveria a valorização dos
melhores quadros, e o tempo de televisão da propaganda eleitoral seria
mais bem aproveitado.

Partidos que só sobrevivem pela coligação desaparecerão, o que,
paradoxalmente, pode funcionar contra a aprovação do distritão.

É como o vestibular e concurso público, os primeiros aprovados entram
até o número de vagas. O senador Francisco Dornelles acha que com a
adoção do distritão haverá uma natural redução dos partidos políticos
no Congresso.

Hoje, nada menos que 21 partidos estão representados no Congresso,
sendo que sete legendas têm quatro ou menos deputados, a maior parte
deles eleita por coligações proporcionais: PHS (2); PMN (4); PRP (2);
PRTB (2); PSL (1); PSOL (3); PTdoB (4).

FONTE: O GLOBO

Reflexão do dia – José Serra


"Economia brasileira hoje: inflação em alta, déficit sideral do balanço de pagamentos, nó fiscal, carências agudas de infraestrutura Tudo isso foi produzido no governo Lula-Dilma e deixado para o governo Dilma. Ou não? Os juros reais brasileiros,que já eram os mais altos do mundo, cresceram mais. Até agora,esta foi a medida mais importante do atual governo. A causa? A festança eleitoral do governo Lula-Dilma. Custo? O governo federal vai gastar cerca de 8 bilhões anuais pagando juros. Isso equivale a quase dois terços do que se gasta com o Bolsa Família. É superior ao orçamento de 12 estados. "

SERRA, José. no Twitter, 19-21 Janeiro, 2011

sábado, janeiro 22, 2011

CELSO MING Cano furado


O Estado de S.Paulo - 22/01/11

De toda água produzida pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), 26% se perdem. São 944 bilhões de litros desperdiçados por ano, volume suficiente para abastecer a cidade do Rio de Janeiro.

A Sabesp perde na água limpa e perde na água suja. Como metade da conta d"água corresponde aos serviços de esgotos, a falta de faturamento no fornecimento de água tratada implica falta de faturamento também no escoamento da rede de esgotos.

E, no caso da água limpa, não está se falando aqui do que sai pelo ralo quando o banho demora demais ou do que escoa da torneira aberta na hora de escovar os dentes. O assunto é água que se perde por deficiências de gestão.

Cerca de 70% dessa perda ocorre por vazamentos nas tubulações ao longo da rede. Outra parte desaparece em ligações clandestinas, obra dos "gatos". E há aquela água que é consumida, mas que não é faturada corretamente porque os hidrômetros estão com defeito.

O até agora presidente da Sabesp, Gesner de Oliveira, vem repetindo que a redução das perdas é uma das prioridades da empresa. Nos últimos quatro anos foram investidos mais de R$ 850 milhões em melhorias nessa área. Os resultados começam a aparecer, mas ainda são tímidos: queda do índice de perdas de 34%, em 2004, para 26%, em 2010.

Esse número é melhor do que o da média nacional, que gira em torno dos 40%. Mas é descomunal se comparado com o que acontece em outras partes do mundo. O índice médio de perdas da OCDE (países ricos) é de 15%. O do Japão está abaixo de 5%. A meta da Sabesp é se igualar aos padrões internacionais, chegando em 2019 a um índice de perdas de 13%.

A estratégia para alcançar esse objetivo não tem mistério: é mapear os pontos de vazamento e tratar de corrigir os problemas. Outra frente de atuação é melhorar a medição nas residências.

O especialista Paulo Costa, da consultoria H2C, adverte que o Brasil emprega tecnologias ultrapassadas. Em Israel, por exemplo, os medidores de água são dotados de chips e a coleta de informações sobre o uso da água é feita por aviõezinhos teleguiados que sobrevoam as casas. Para introduzir sistema semelhante aqui, seria preciso trocar todos os relógios de água.

O consultor em saneamento Airton Gomes aponta outra deficiência: baixo fortalecimento do aparato regulatório do Estado. As agências reguladoras desse segmento são relativamente novas. A responsável em São Paulo é a Agência Reguladora de Saneamento e Energia (Arsesp), com menos de três anos de atuação. Hoje ela somente acompanha a medição para ver o quanto de água se perde. O que se espera é que participe mais ativamente de todo o processo e exija mais eficiência.

"Nós sabemos que os programas de redução de perdas são caros, mas as companhias precisam entender que custa muito mais jogar fora água tratada", avisa Tobias Jerozolimski, superintendente da Arsesp.

A Sabesp tem prejuízo de R$ 2 bilhões por ano (28% das receitas) com essas perdas. Mas perde também com a falta de faturamento de serviços de esgoto. Apenas na Grande São Paulo há 6 mil poços artesianos clandestinos, cuja água usada vai para a rede de esgotos e deixa outro rombo nas contas. / COLABOROU ISADORA PERÓN

CONFIRA

O vizinho reclama
O ministro Mantega está determinado a encaminhar à Organização Mundial do Comércio e ao Grupo dos 20 proposta no sentido de que a manipulação do câmbio passe a ser considerada manobra desleal que favorece as próprias exportações em detrimento dos demais.

Reclamação antiga
Nos anos 30, o economista inglês Dennis Robertson já denunciava políticas de desvalorização cambial como manobras destinadas a "transformar o vizinho em mendigo" (beggar thy neighbour). Em outubro, o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, engrossou essas denúncias.

Queixo de vidro
O objetivo de Mantega é enquadrar os Estados Unidos, cujo banco central está despejando dólares no mercado e produzindo sua desvalorização, e também a China, que mantém o yuan atrelado ao dólar. É improvável que Mantega seja ouvido. Com menos sucesso, o Brasil também está tentando desvalorizar o real para favorecer seus exportadores.

Além da solidariedade:: Merval Pereira

A solidariedade desencadeada pela tragédia na Região Serrana do Rio motivou não apenas ações objetivas de ajuda, mas também as mais diversas propostas sobre o que fazer e como agir para evitar que se repitam os mesmos erros históricos. Das muitas contribuições que recebi, destaco três comentários de leitores como representativos de preocupações generalizadas.

Roberto Moraes, engenheiro, blogueiro e professor do Instituto Federal Fluminense, em Campos, publicou um texto em seu blog que pode ser resumido numa frase: "Tragédia nunca é natural e prevenção deve ser sinônimo de planejamento".

Partindo do princípio de que "o uso e a ocupação irregular do solo é o problema recorrente nos municípios e a causa básica das graves consequências", Moraes evita indicar culpados para se ater ao que deve ser feito para evitar "que as cidades continuem a crescer do jeito que acontece atualmente. Pelo menos, para isto, a lamentável ocorrência da Região Serrana tem que servir".

O crescimento desordenado das cidades nos últimos 50 anos, com a urbanização crescente do país, precisa ser organizado, analisa ele: "Os puxadinhos de casas, bairros e das cidades têm que ser planejados. Não adianta apenas buscar culpados nos moradores ou nos gestores, ambos têm responsabilidade, mas a solução dos problemas é mais ampla".

O planejamento da cidade deveria ser sempre participativo, segundo ele, "porque mais do que dividir as decisões, o planejamento conjunto permite o aprendizado informal das técnicas de prevenção, de construção e, ainda, de forma complementar, o controle social dos custos das intervenções públicas".

Por isso, Moraes propõe "cobrar que as prefeituras tenham corpo técnico de engenheiros, geólogos, biólogos, sociólogos que ajudem nestes programas de planejamento".

Não como "fiscais e sim, como auxiliares da expansão da cidade, seja nos projetos governamentais, sejam no apoio ao projeto e planejamento dos chamados puxadinhos da habitação dos moradores, no debate sobre a praça que desejam, etc".

Os municípios que não pudessem fazer estas contratações "deveriam se consorciar com os vizinhos para construir uma câmara técnica" com este objetivo.

Segundo ele, essas ações devem se realizar nos municípios, que é onde a vida real acontece, mas "o desenho, apoio até financeiro para esta finalidade poder sair dos governos estaduais que aí sim devem agir para integrar municípios com soluções que sejam intermunicipais" para que as nossas cidades "sejam melhores e mais agradáveis do que são hoje".

Roberto Moraes acha que "não apenas as cidades da Região Serrana terão que ser reconstruídas. A maioria das cinco mil cidades brasileiras terá que ser replanejada e não há momento mais oportuno para este recomeço".

Já o presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro, José Luiz Alquéres, tratou da dificuldade de retirar pessoas de áreas de risco lembrando um amigo, Patrick Panero, que se empenhou em 1985, com um grupo de hidrólogos e especialistas em vulcões, em convencer a população e os fazendeiros da região de Armero, próximo a Bogotá, a saírem das suas casas.

"Eles tinham evidências de que a atividade subterrânea vinha aumentando, a temperatura subindo e que o cume nevado da montanha do Neval del Ruiz poderia derreter, causando avalanches", conta Alquéres.

Não tiveram êxito, e à meia noite o vulcão esquentou, a geleira fundiu. A avalanche matou cerca de 25 mil pessoas. Como conselho para as autoridades que estão montando sistemas de alarme e prevenção de tragédias, Alquéres comenta: "A coisa mais importante é mesmo a credibilidade e o como comunicar".

O ex-deputado Ronaldo Cezar Coelho tem outra preocupação: "Quem vai cuidar dos órfãos da serra com eficiência nos próximos dez anos?", pergunta.

Ele teme que "quando a poeira baixar" faltará um terceiro setor vocacionado e financiado para a ação social sustentável complementar à ação do Estado.

Ronaldo Cezar Coelho acha que esta "é a oportunidade na crise de se debater a filantropia moderna no Brasil, além da caridade ou das ações de solidariedade de benefício calculado para empresas e pessoas, cada qual agregando valor ao seu nome e marca".

Lembrando que nos Estados Unidos mais de 40 bilionários já comprometeram em vida mais da metade do patrimônio em filantropia, Ronaldo Cezar Coelho diz que isso acontece "não por que somos patrimonialistas portugueses e eles anglo-saxões, Quakers com monopólio do altruísmo".

Acontece, sobretudo, diz ele, porque nos Estados Unidos "há uma grande indução fiscal para doar em vida (trusts, fundações) e uma firme cacetada anunciada para sua morte, se assim preferir. Em duas gerações sua fortuna desaparecerá em impostos".

Portanto, ele acha que este é "o momento histórico" para debater imposto de herança no Brasil combinado com incentivos para a filantropia moderna, "que vai organizar o terceiro setor e institucionalizar as boas intenções e o desejo de participação de toda a sociedade em complemento ao Estado em tão diversas ações sociais".

Assunto polêmico, reconhece, mas inadiável.

A nota da coluna de ontem sobre a desclassificação do filme "Lula, filho do Brasil" na competição do Oscar de filme estrangeiro provocou diversas mensagens. Publico aqui trechos da recebida de Osias Wurman, cônsul honorário de Israel:

"A Historia é rica em exemplos de fracassos políticos e pessoais, indignamente debitados aos judeus. Assim foi por séculos, e lutamos muito, a cada geração, para desfazer mitos, sofismas e mentiras". (...)

(...) "O filme de Lula é panfletário e desmereceu a atenção dos próprios brasileiros. Um fracasso retumbante de bilheteria. Ganhar o Oscar por que? Por quem?"

(...) "Sou contra o uso da comunicação para criar "ídolos". A História não perdoa a idolatria. Covardia da fracassada produtora em atribuir aos judeus o destino desta obra induzida e sem qualidades para um Oscar. Nada a ver com Israel ou lobby judaico".

Teorias conspiratórias à parte, o filme não tinha mesmo qualidade para representar o Brasil na disputa do Oscar, opinião que já havia expressado em coluna anterior e que deixei clara na de ontem, ao dizer que ele foi selecionado "inexplicavelmente".

FONTE: O GLOBO

sexta-feira, janeiro 21, 2011

Dilma, tragédia e Estado

16/01/2011 - 00h01

Folha de S Paulo

Há uma lição valiosa a ser aprendida da tragédia no Rio.

Qual o papel do Estado em um país pobre, mas em franco desenvolvimento? No Brasil?

Morreram ricos e pobres. Por causa das chuvas, e do Estado. No fundo, é isso.

Ricos procuram vistas agradáveis ou rurais por prazer. Ou para ganhar dinheiro com negócios. Os pobres estão lá para servi-los.

Vão morar onde? A quilômetros que os obriga à exaustão para ir e vir do trabalho? Preferem as encostas, perto dos patrões.

Mas é o Estado que permite estarem todos na zona de risco. Permite porque é omisso, balofo e cheio de atribuições.

Nos anos Lula e FHC, o peso do Estado sobre a sociedade cresceu quase 10 pontos percentuais. É muito. Mais de um terço do que o país produz hoje vai para o Estado em impostos.

Reclamamos de deslizamentos, aeroportos lotados, bueiros entupidos e enchentes, do trânsito e da vida.

A culpa, em grande parte, é do Estado.

Lula teve um papel preponderante ao deixar crescer o peso do Estado. Ao transferir grande parte do aumento dos impostos aos mais pobres, via Previdência e programas sociais.

Mas isso exauriu o Estado e seus recursos. Em resumo: foi bom, repartimos o bolo. Mas acabou.

Na semana passada, Dilma decidiu que, para colocar as contas públicas em ordem, economizará cortando investimentos. Em obras, estradas, saneamento, parafusos e no que mais for necessário.

Reconheceu de vez que o Estado chegou ao limite.

O que isso revela? Que nosso Estado, enorme e caro, é um anão em investimentos.

Era a opção brasileira desde 1988, quando a Constituição definiu como prioridade ajudar os desvalidos. Vem daí o estouro das contas da Previdência, os programas assistenciais e outras despesas sem contrapartida dos beneficiários.

É jogo jogado.

Hoje: o Brasil tem uma iniciativa privada enorme e ávida por dinheiro.

Esse é nosso potencial.

Antes de almejar construir aeroportos, estradas e correr atrás de tragédias como as do Rio, a prioridade do Estado deveria ser regular, orientar, trancar se necessário e fiscalizar o setor privado.

Empresários querem sempre mais e muito. Seus excessos são suas virtudes.

No Brasil, o Estado tem sido um péssimo maestro.

*

Pesquisa de 2010 da Confederação Nacional dos Transportes diz que só 32% dos 76 mil km de rodovias públicas do país foram considerados ótimos/bons no ano passado.

Entre as concessionadas para o setor privado (apesar de pedagiadas) foram considerados ótimos/bons 87% dos 14,5 mil km avaliados.

Lula permitiu que apenas uma dezena de rodovias pudesse ser administrada pela iniciativa privada. E só a partir de 2008

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Carlos Alberto Sardenberg China: medo e cobiça

20/01/2011
O Globo

Era só o que faltava: os chineses não apenas estão cultivando laranjas, como pretendem alcançar uma produção de 30 milhões de toneladas em 2015. Isso é mais do que produzem hoje os estados de S. Paulo e da Flórida, dominantes nesse mercado.

Temores exagerados deste lado do mundo? Pode ser, mas o pessoal do setor agrícola lembra que há dez anos os chineses quase não plantavam maçãs. Hoje, respondem por 75% das exportações mundiais.

Pensou que os chineses iam invadir o mundo apenas com eletrônicos baratos? Pois é, vem mais. Mas há outra maneira de ver a história. Hoje, os chineses consomem pouco suco de laranja. Lá vivem 1,4 bilhão de pessoas, em condições econômicas bem diferentes. Em Shangai, a renda e o padrão de vida se aproximam dos níveis europeus ocidentais, Itália, por exemplo. Mas há regiões onde a população enfrenta pobreza pior que a da África.

Mas digamos que apenas os chineses já pertencentes às classes média e rica (sim, há muitos milionários no país comunista) tomassem uma caixinha de suco de laranja por dia. Seriam mais 800 milhões de pessoas tomando suco, mais de duas vezes e meia a população americana, mais de quatro vezes a população brasileira. E se eles tomassem também um cafezinho por dia? — sonham produtores brasileiros, colombianos e vietnamitas.

É isso, a China desperta medo e cobiça É ameaça e salvação. No período de recuperação da crise de 2008/09, foi o motor chinês que puxou as economias emergentes, com seu consumo fortíssimo de minérios e produtos agrícolas. Não seria exagero dizer que a China, ao continuar crescendo perto dos 10% ao ano, salvou o mundo de uma crise devastadora.

Ao mesmo tempo, produtores do mundo todo se queixam da invasão chinesa em quase todos os setores da economia, de automóveis (aliás, já se vê pelas ruas brasileiras) até maçãs e laranjas.

O que fazer? — é também a pergunta que se faz o presidente Barack Obama, ao receber, com “banquete de Estado”, seu colega chinês Hu Jintao. Trata-se do G2, a reunião das duas maiores economias do planeta, as duas que mais exercem poder e influência sobre o resto do mundo.

O atual tratamento dado ao líder chinês já é uma mudança. Quando se reuniu com George Bush, quatro anos atrás, Hu teve apenas um “almoço de trabalho”. Agora, recebe o mais alto tratamento concedido a líderes aliados. Para alguma coisa servem os US$ 900 bilhões que os chineses têm aplicado em títulos do governo americano.

Mas a “gala de Estado” reflete o avanço da China no cenário internacional recente. Passou o Japão como a segunda maior economia do planeta, aumentou sua presença mundo afora, com negócios e investimentos, e desempenhou papel crucial na saída da crise.

Por outro lado, a China tem conten ciosos variados com os EUA e com o mundo todo. Começa com sua moeda, clara e artificialmente desvalorizada, o que dá ao produto chinês uma vantagem global, contra todos. Sem contar as disputas comerciais, restrições a negócios de estrangeiros na China e, claro, a ditadura que não respeita os direitos humanos e que protege o Irã e a Coreia do Norte.

Tudo considerado, jornalistas americanos perguntaram à secretaria de Estado, Hillary Clinton: “Estamos diante de um país amigo ou um inimigo?”

Ela sai pela tangente. Disse acreditar que EUA e China podem manter “relações normais”. Na economia, não há mais como separá-los.

Os chineses vivem, em boa parte, de vender nos shoppings americanos. São produtos bons, baratos, que ajudaram a melhorar o nível de vida do consumidor dos EUA. Além disso, boa parte desses produtos é fabricada por companhias americanas na China. Está escrito na parte de trás do iPhone: “Desenhado pela Apple na Califórnia/ Montado na China.”

Ou seja, a relação é boa para as duas partes. Mas os empregos industriais fogem dos EUA, é a queixa americana. Que poderia ser resolvida se os chineses valorizassem sua moeda e importassem mais, como vive argumentando o secretário do Tesouro dos EUA, Timothy Geithner.
Isso quer dizer que há maneiras de se administrar as diferenças. Ou, por outra, não há como eles caminhem para um confronto econômico aberto.

Mais difícil é saber como tratar a questão política, ditadura e desrespeito aos direitos humanos. Muitos dizem que não há o que fazer além de criticar, marcar posição e, paciência, esperar que o regime chinês evolua internamente para uma coisa mais próxima da democracia.

Como se vê, não se trata de uma disputa tipo EUA x União Soviética. Agora, estão todos no capitalismo, discutindo moeda, comércio e investimentos.

E o Brasil da presidente Dilma? Para começar, poderia enterrar essa bobagem da Era Lula de achar que a China é nossa parceira estratégica na diplomacia Sul-Sul, de pobres x ricos. A China é a segunda potência, quer ser rica, e pronto. Tem mais tendências imperialistas do que para solidariedade com o Terceiro Mundo.

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. E-mail: sardenberg@cbn.com.br; carlos.sardenberg@tvglobo.com.br.

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