Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 16, 2011

VINICIUS TORRES FREIRE Massacres naturais

Folha de S Paulo


Mortandade no Rio é apenas um exemplo do nosso modo de produção de crueldades


FAZ UM par de anos, uma questão de financiamento do bem-estar social tornou-se polêmica na Alemanha, conta um amigo versado em assuntos germânicos. O governo ainda deveria bancar o custo do serviço de espalhar pedrinhas no gelo liso das calçadas, pedrinhas que evitariam escorregões, tombos e fraturas nos invernos?
Parece piada, certo, um conto de fadas da política fiscal, ricas sofisticações da Previdência de Hansel & Gretel. Seria mesmo?
Quedas e ossos quebrados são um perigo maior para idosos. Além dos danos causados pela fratura, pode haver complicações. Pedrinhas no gelo podem evitar sofrimentos e mortes. O que parecia piada é enfim um cuidado civilizado. Em lugares mais selvagens, tal coisa parece frescura, perdoe-se a expressão.
Agora, pensemos no lado escuro da força. Em vez do "verglas", do gelo liso dos passeios europeus, considere-se um rio bengali. Em domingos fracos de notícias, qualquer jornalista já publicou uma nota de dez linhas sobre naufrágios assassinos em Bangladesh, comuns como mortandades em minas de carvão na China ou massacres em guerras africanas. Ninguém liga muito. A vida é muito barata em certos lugares.
O Brasil é um desses "lugares Bangladesh". Somos melhorzinhos porque alguns de nós insistem em criar um sistema público e universal de saúde e previdência. Ainda assim, somos uma tigrada braba.
Estamos horrorizados e comovidos com a mortandade no Rio, não há como negar, mas tal reação tem algo de farisaico; há mesmo fascínio com a catástrofe sublime. Mortes mais rotineiras parecem fazer parte da ordem da natureza; parceladas em poucas dúzias, não provocam a sensação do "recorde", do "pior em "n" décadas" e outros clichês midiáticos.
Uns 30 mil mortos por ano no trânsito não balançam o coreto (um sexto das vítimas é de atropelados). Outros tantos mortos a bala, facada etc, também não. Nem uns 20 mil mortos de diarreia. Ou as dúzias que muita vez e outra morrem nos nossos "naufrágios Bangladesh" no Amazonas. Ou os infectados em hospitais sujos. Os abandonados à bebedeira. Os dementes largados na rua. Etc.
Nestes dias da mortandade do Rio, tornou-se indignação bem-pensante dizer que os cadáveres não podem ser colocados na conta da natureza, mas sim na das "autoridades" ineptas. Sim, as "autoridades" são o que sabemos (e elegemos), mas sugerir que o massacre fluminense deriva de uma espécie de "erro administrativo" é burrice misturada a má-fé.
Curiosa ou vergonhosamente, uma palavra mais sensata veio de uma "autoridade", a presidente da República. Dilma Rousseff fez o favor de lembrar que, no Brasil, morar de modo precário ou ultrajante é quase regra, não a exceção. Morar, assim como viver, é muito perigoso por aqui. Como diria um economista, no Brasil o risco de morte estúpida é "sistêmico".
Trata-se de um modo de produção de crueldades, de indiferença necrófila a horrores cotidianos: favelas em geral, muvucas penduradas em barrancos, muquifos em meio a esgotos pantanosos, a vida diária insalubre e massacrante dos pobres e outras tolerâncias à violência. A conivência com a morte é sistemática, assim como a opressão que faz tais horrores parecerem tão cotidianamente naturais.

vinit@uol.com.br

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