O Estado de S.Paulo 28/11/2010
Algumas análises elogiam a política econômica do governo por ter dado continuidade à de FHC ao manter o tripé responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação. Esse elogio foi mais incisivo nos três primeiros anos do governo Lula, de 2003 a 2005. Naquela ocasião, era criticado o baixo nível de crescimento econômico perante os demais países. Ficou célebre a discussão interna ao governo sobre ampliação do superávit primário ou pisar no acelerador do crescimento, posição vitoriosa defendida por Dilma. A partir de março de 2006, ocorreu mudança na orientação fiscal com a entrada do ministro Mantega. A equipe do Ministério da Fazenda foi substituída para priorizar o desenvolvimento econômico. O PAC foi a peça chave do segundo mandato.
As críticas à época previam deterioração fiscal e inflacionária com a elevação das despesas do governo. Elas retornam agora com nova roupagem para pressionar o governo a pisar no freio e elevar a Selic. Vale analisar o que ocorreu.
Comparação. Entre 2003 e 2005, o superávit primário (receita menos despesas exclusive juros) foi em média de 3,7% do PIB e caiu para 3,1% entre 2006 e 2009, mas as despesas com juros caíram de 6,9% do PIB para 5,9%, pois a Selic média anual caiu de 19,7% para 12,5%. Assim, o resultado nominal, que considera os juros, melhorou de um déficit de 3,2% do PIB para 2,8%.
A relação entre a dívida líquida e o PIB, ao final de 2005, estava em 50,6% e, ao final de 2009, em 38,4%. Essas melhoras fiscais se deram junto com queda da inflação de 7,5% para 4,5% e crescimento econômico de 3,3% para 3,7%, apesar da crise de 2009. Esses resultados serviram para evidenciar não apenas a melhora do desempenho fiscal, mas também que o maior nível de crescimento se deu com a redução da inflação.
Neste ano eleitoral, as críticas se acentuaram mais ainda devido ao crescimento das despesas de custeio do governo e a chamada "contabilidade criativa" usada na operação de capitalização da Petrobrás. Excluindo essa operação, as despesas de custeio cresceram entre janeiro e setembro 9,4% sobre igual período do ano anterior, e as receitas, 11,2%, o que expressa uma melhora fiscal.
Tensões. As tensões entre o MF e o Banco Central (BC) se acentuaram a partir de 2006, com visões opostas sobre a taxa de juros Selic. O presidente optou pela autonomia operacional do BC e, para isso, foi dado ao presidente do BC o status de Ministro. Essa decisão coincidiu com a abertura de inquérito contra ele por sonegação, lavagem de dinheiro e remessa ilegal de dinheiro para o exterior, relativo ao período em que esteve no BankBoston.
Esta tensão sobre a Selic deverá ser amenizada com a nova equipe econômica, pois a pessoa indicada para presidente do BC tem boa relação com o MF. Mais importante do que a garantia de autonomia dada pela presidente ao BC é o que ela disse em evento recente: "Não importam os nomes, a responsabilidade pela economia é minha." Nesse ponto deverá ocorrer maior interação nas decisões econômicas com participação ativa da presidente.
Nova política econômica. Desde o Plano Real, a política do BC para o controle inflacionário foi a de manter a Selic elevada para atrair dólares e, com isso, apreciar o real, reduzindo o preço dos produtos importados. A mola mestra do controle inflacionário foi a âncora cambial. O real foi a moeda que mais se apreciou perante o dólar, levando o País a passar de superavitário a deficitário nas contas externas. Com a queda contínua do dólar perante o real, o MF se viu obrigado a elevar o IOF sobre as aplicações de estrangeiros em títulos do governo. O objetivo foi anular a ação do BC de manter a Selic elevada para atrair o capital estrangeiro em títulos do governo e, assim, formar a âncora cambial.
Com a injeção de US$ 600 bilhões a ser feita pelo BC americano, perde o sentido manter a Selic elevada, o que aceleraria o processo de desindustrialização. Espero que venham novas restrições à entrada de dólares, com maiores tributos e restrições no campo da regulação.
Na questão fiscal, a nova equipe econômica se compromete a um controle mais rigoroso das despesas de custeio. Por outro lado, o BC deverá perseguir a meta de taxa real de juros de 2% até 2014, o que contribui para a redução das despesas com juros, necessária para o ajuste fiscal de resultado nominal zero em 2014, metas determinadas pela presidente. De qualquer forma, o principal ajuste fiscal não está no custeio, mas na redução da Selic, e as economias que porventura ocorrerem deverão ser usadas para reduzir o elevado déficit social e de infraestrutura.
Reservas internacionais. No auge da crise financeira, o Brasil tinha US$ 200 bilhões, que foram suficientes para enfrentá-la. Agora, ruma para US$ 300 bilhões, 50% a mais. Têm-se dois problemas: a) para constituir reservas, emitem-se títulos da dívida do governo, que paga taxas de juros equivalentes à Selic e são aplicadas em títulos dos EUA, sendo agravada esta perda pela valorização do real sobre todo o estoque de reservas; b) o BC compra mais dólares para engordar as reservas do que o saldo do fluxo cambial. Isso leva os bancos a ficarem com a posição "vendida" em dólares, ou seja, apostarem na apreciação do real. Resultado: dano fiscal e cambial.
A dúvida é se essa política de continuar aumentando as reservas será mantida, pois o custo do seu carregamento deve superar R$ 50 bilhões este ano, mais do que o chamado déficit da previdência, previsto em R$ 46 bilhões. Se continuar nesse ritmo de crescimento e caso a Selic cresça, conforme deseja o mercado financeiro, poderá atingir em 2011 R$ 100 bilhões! Esses valores são bem maiores do que a que poderia ser obtida por uma bem-sucedida racionalização das despesas do governo federal.
Para agravar esse quadro, o MF fala em endividar o Fundo Soberano do Brasil adquirindo títulos da dívida pública para comprar dólares. Assim, BC e MF iriam contribuir para ampliar as reservas e a posição "vendida" dos bancos. Isso serve claramente aos objetivos do BC para usar a âncora cambial e vai contra os objetivos do MF de redução das despesas com juros, da dívida pública e de conter a apreciação do real.
Inflação. Deverá ser mantida a política de metas de inflação, mas a responsabilidade pelo controle inflacionário não deveria ficar exclusivamente com o BC, pois cerca de 70% dos fatores que a influenciam não dependem dele. Exemplo típico vem ocorrendo este ano com alimentos e commodities - com destaque para o minério de ferro.
No caso dos alimentos, de janeiro a abril elevaram a inflação; de junho a agosto, rebaixaram-na; e de setembro até o final do ano, deverão elevá-la. Quanto às commodities, devido à desvalorização internacional do dólar, tendem a subir de preço e dependendo da crise europeia, estagnação americana e redução do ritmo de crescimento chinês, poderão cair. A Vale resolveu fazer mega elevações de preços internos no minério de ferro, contaminando a inflação. Assim, parece de bom senso que o que seja controlado, em vez do IPCA, seja seu núcleo, que expurga as variações de preços sazonais e circunstanciais. Isso permite aferir o real comportamento da inflação consistente com o comportamento de toda a economia, e não apenas fatores localizados.
Selic. O mercado financeiro já deflagrou sua campanha para a elevação da Selic, aproveitando altas circunstanciais de preços de alimentos, combustíveis e commodities, que não são passíveis de serem alteradas pela Selic. Querem, como sempre, elevar os lucros à custa do governo. Não creio que isso vá ocorrer, pois a presidente já afirmou que quer a redução da Selic no início do ano. É importante que sejam dados sinais claros nessa direção e, com isso, quebrar o tabu da necessidade do País ter a maior taxa de juros do mundo para controlar a inflação. Além disso, a alteração da Selic, segundo o BC, leva nove meses para alterar a inflação. Nesse período, tudo pode ocorrer, interna ou externamente, que afete os preços.
O maior beneficiário dessas mudanças seria o governo, obtendo a maior parte do ajuste fiscal ao deixar de jogar dinheiro fora na elevada conta de juros, reduzindo o custo do carregamento das reservas internacionais e fazendo cair rapidamente a relação dívida / PIB. A questão da valorização do real seria atenuada, especialmente quando do despejo da tsunami americana de US$ 600 bilhões até meados do próximo ano. O tempo urge e as mudanças deveriam ocorrer logo no início do novo governo. Vamos aguardar.
MESTRE EM FINANÇAS PÚBLICAS PELA FGV E CONSULTOR. ESCREVE A CADA 15 DIAS PARA O ESTADO DE S. PAULO