A assombração do continuísmo A idéia de um terceiro mandato consecutivo para
É uma idéia estapafúrdia que, volta e meia, reaparece no noticiário político, oriunda do baú dos ideólogos da esquerda marxista e dos parlamentares fisiologistas de qualquer espectro – a de mudar a Constituição brasileira e permitir que o presidente Lula possa concorrer a um terceiro mandato em 2010. Na visão obtusa e esquemática dos ideólogos, a justificativa é que a chegada de um ex-operário ao Planalto representaria o "fim da história", com o povo instalado no poder, e, então, para que fazer eleições? É Lula lá até quando a biologia permitir... Nessa visão, a saída de Lula significaria, assim, um retrocesso na marcha para o socialismo, sendo o terceiro mandato apenas uma etapa para, se tudo der certo, a manutenção vitalícia do companheiro na Presidência da República Popular do Brasil. Na visão igualmente obtusa, mas pragmática, dos fisiologistas, dar ao presidente a possibilidade de ter mais um mandato consecutivo seria a forma de esticar a boquinha que eles e seus apadrinhados têm no atual governo. Boquinha, não, bocarra. Há, pelo menos, 10 000 petistas em cargos de confiança na administração federal. Boa parte deles são pelegos da república sindical – aquela gente que organizou dias atrás um convescote no Salão Negro do Congresso para comemorar o presentão que Lula lhe deu, ao vetar a fiscalização da dinheirama que os brasileiros que pagam impostos entregam aos cofres das centrais sindicais. "Os dirigentes sindicais, na gestão petista, passaram a ocupar muitos postos-chave do governo", afirma o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues. "Uma vez instalados lá, não pensam mais em voltar para o trabalho na fábrica." Esse é o caldo principal no qual é cozida a idéia de um terceiro mandato. A maioria dos políticos governistas nega o namoro com essa aberração. "Anuncio desde já o apoio à volta de Lula à Presidência em 2014 ou 2015. Mas em 2010, não, de maneira nenhuma vamos apoiar essa iniciativa", diz o deputado Luciano Castro, líder do PR. "O país tem uma Constituição que precisa ser respeitada e não pode ser mudada para se adaptar à conveniência de cada governo", afirma o senador petista Delcídio Amaral. O próprio Lula, que sempre rechaçou mais um mandato consecutivo em pronunciamentos oficiais, voltou a declarar na semana passada, durante uma entrevista coletiva na Holanda: "Sou contra o terceiro mandato porque a democracia é um valor incomensurável com o qual não podemos brincar. E, segundo, a alternância de poder é uma coisa extremamente saudável para o país". Ele acrescentou: "Qualquer pessoa que se ache imprescindível começa a colocar riscos à democracia. Pobre do governante que começa a achar que é insubstituível ou imprescindível. Está nascendo, dentro dele, uma pequena porção de autoritarismo ou de prepotência. E isso eu não carrego na minha bagagem política". Lula foi contundente, mas ainda não o suficiente para convencer sua própria corte. A verdade é que planos para esticar o mandato do presidente continuam sendo gestados e ficam a cada dia mais mirabolantes.
Sem que haja um candidato do PT com reais oportunidades de suceder a Lula em 2010, a tese do terceiro mandato anda açulando ainda mais a imaginação de pessoas bem próximas ao presidente – e é isso que faz com que a veemência de Lula contra a proposta seja vista com uma dose de desconfiança. O deputado petista Devanir Ribeiro, compadre e amigão do presidente desde os tempos do ABC (ambos até passaram o réveillon juntos, na Granja do Torto), parece ter a missão precípua de soltar balões de ensaio para ver se a coisa cola. De quando em vez, ameaça apresentar um projeto de emenda à Constituição. Na semana passada, depois de idas e vindas, ele acabou adiando de novo a sua proposta. A rejeição quase absoluta à tese de um terceiro mandato, segundo o parlamentar, fez com que ele modificasse "um pouco" o seu projeto. Devanir, agora, pretende acabar com a reeleição, prorrogar o mandato do amigo Lula até 2011 ou 2012 e deixar uma brecha legal para um novo mandato – que ele chama de "nova eleição" e não de reeleição (veja quadro). Na última quarta-feira, em uma conversa no plenário da Câmara, Devanir revelou a VEJA os detalhes de sua nova sacada: vai propor – nesta semana, segundo ele – um mandato de cinco anos para todos os cargos eletivos, de vereador a presidente da República. Ao mesmo tempo, quer aprovar a unificação do pleito para que todos os cargos sejam disputados de uma vez a cada cinco anos. Para que essa coincidência de datas ocorra, o deputado vai propor que o atual mandato de Lula, dos governadores, senadores, deputados federais e estaduais seja ampliado para mais dois anos. "Aí teríamos uma eleição única em 2012. A partir daí, todos os políticos teriam mandato de cinco anos. É uma proposta coerente, que traz economia de recursos ao reduzir o número de eleições", disse Devanir. Resumindo: pela proposta do deputado muy amigo, Lula, de imediato, já ganharia mais dois anos de mandato. Se o plano der inteiramente certo, o presidente ainda poderá se candidatar em 2012 a mais cinco anos de mandato. Não seria re-reeleição, mas uma eleição baseada em "novas regras". Ou seja, o projeto de Devanir daria ao presidente a chance de ficar quinze anos seguidos no poder. Na história republicana, ele se igualaria ao ditador Getúlio Vargas, que comandou o Brasil por quinze anos seguidos. "Lula não tem por que ser contra. O que vou propor agora não é plebiscito nem terceiro mandato", devaneia Devanir.
Um terceiro mandato consecutivo – para Lula ou qualquer outro nome – seria nefasto para o Brasil. E também para a biografia do presidente. A história mostra que aumento da corrupção, desordem na economia e restrição às liberdades costumam ser o legado dos governantes que resistem a deixar o cargo. "A manutenção no poder, por longo período, de um governante ou grupo político potencializa o risco de retrocesso econômico", diz o professor da Universidade de São Paulo Júlio Pimentel Filho, especialista em América Latina. No México, os 71 anos ininterruptos de domínio do Partido Revolucionário Institucional (PRI) atrasaram em décadas o avanço do país. Nos anos 50, enquanto seus vizinhos latinos ingressavam em um ciclo de desenvolvimento, os mexicanos sofriam com a teimosia do partido na continuidade de uma política agrária voltada para a subsistência. No Paraguai, o longo reinado do Partido Colorado, que permanece no poder até hoje, ajudou a florescer a corrupção, o contrabando e o narcotráfico. "A alternância de poder é essencial, também, porque permite a renovação de idéias e a vigilância sobre o uso da máquina do estado. Além disso, evita um grande perigo: o de um vácuo de lideranças – condição fundamental para perenizar ditadores", afirma a cientista política Lucia Hippolito. Para o jurista Saulo Ramos, a perpetuação de um presidente ou de um único partido tem como corolário a deterioração dos princípios éticos. "A corrupção aumenta e generaliza-se, porque os governantes e seus acólitos adquirem a certeza da impunidade que o poder político infunde aos que fazem dele um meio de servir-se."
A alternância de poder nasceu na Grécia antiga e serviu como base da revolução inglesa do século XVII, que marcou o rompimento com o absolutismo. Para os revolucionários ingleses, a figura do rei como fonte única de poder era inaceitável. Os americanos, herdeiros diretos do liberalismo inglês, levam tão a sério esse princípio que ao presidente dos Estados Unidos só é permitida uma única tentativa de reeleição. Após cumprir dois mandatos, ele nunca mais poderá se candidatar ao cargo. Esse limite foi imposto depois que Franklin Delano Roosevelt conseguiu seu quarto mandato consecutivo. O exemplo de Roosevelt, por sinal, é invocado pelos adeptos de um terceiro tempo para Lula. Eles se esquecem de que os Estados Unidos enfrentavam, então, uma guerra na Ásia e na Europa e não deviam apresentar divisões internas diante do inimigo. Nada que se compare à tranqüila situação do Brasil nos dias de hoje. No caso brasileiro, é preciso atenção redobrada, uma vez que a regra do jogo presidencial tem sido mudar a regra – sempre em favor de quem está no cargo, é claro. Para ficar apenas nos governantes do período pós-regime militar, José Sarney esticou seu mandato em mais um ano e Fernando Henrique Cardoso emplacou uma emenda à Constituição que lhe deu o direito de disputar – e vencer – a reeleição. Essa é, inclusive, a tese esgrimida pelos petistas para justificar uma nova mudança na lei, como se dois erros fizessem um acerto. Enquanto o balonista Devanir solta seus aeróstatos para o distinto público, o presidente do PT, Ricardo Berzoini, e o líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), costuram no Congresso a aprovação de uma reforma política que começaria pela abolição do instituto da reeleição e pela extensão do mandato para cinco anos. Berzoini e Fontana têm apresentado a seus interlocutores um levantamento mostrando que, apesar de a atual legislação prever um mandato de quatro anos, na prática os presidentes brasileiros nunca mantiveram essa regularidade. O prazo, segundo eles, teria sido uma mera cópia da Constituição americana pela primeira carta da república brasileira, de 1891. Mesmo assim, afirmam, depois de 1930, os mandatos presidenciais foram definidos muito mais pela força do presidente do que pela letra da lei.
VEJA ouviu na semana passada ministros do Supremo Tribunal Federal, que se manifestaram sobre o terceiro mandato com a condição do anonimato, pois podem vir a ter de julgar o assunto. O entendimento geral é que a corte será provocada a opinar sobre a legalidade de qualquer emenda à Constituição que altere a duração do mandato presidencial. Nos últimos anos, o STF passou a examinar com mais freqüência a legalidade de decisões tomadas pelo Congresso sobre legislação eleitoral. Foi assim em relação à verticalização de alianças e à fidelidade partidária. E assim será em alterações no mandato presidencial. A aprovação direta de uma emenda que permita o terceiro mandato levaria mais polêmica ao tribunal. Três ministros entrevistados avaliaram que seria um "casuísmo" sem precedentes no mundo democrático. Portanto, os três votariam pela derrubada da emenda. Alguns magistrados, porém, entendem que, apesar do casuísmo, o Supremo não teria condição de anular a decisão do Congresso, que é soberano. "No entendimento majoritário do STF, estaria configurado um golpe constitucional, contra o qual não se poderia fazer nada", diz um dos ministros da corte. Já o plebiscito e a possibilidade de uma "nova eleição" para Lula não encontram sustentação legal alguma, segundo os ministros. "Essa tese de zerar o jogo só é defendida por juristas de encomenda. Quando a reeleição foi aprovada, em 1997, alguns dirigentes do PSDB tentaram emplacar a tese de que Fernando Henrique poderia disputar mais duas eleições com a regra nova. Ninguém sério do meio jurídico aceitou o argumento", afirma outro ministro. A adoção de um terceiro mandato apenas por plebiscito também é fortemente questionada. Para os ministros, não é legal modificar cláusulas pétreas da Constituição por consulta popular sem a chancela do Congresso. "Esse tipo de democracia direta é típico de republiquetas que não prezam pelo respeito à democracia ou à lei. O Brasil já tem um Congresso eleito legalmente, que representa o povo e deve tomar as decisões por ele", diz um deles. Além disso, a mudança constitucional por plebiscito abriria um precedente perigoso. Todo obstáculo a um governo com grande popularidade, como o atual, poderia ser removido por decisão do povo. Isso poderia implicar a dissolução do Congresso ou do próprio Supremo. A primeira autoridade do Judiciário a declarar publicamente sua oposição ao continuísmo de Lula foi o novo presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Gomes de Barros: "A alternância no poder é salutar. Como cidadão, eu me preocupo muito com a mudança das regras no meio do jogo. Um dos grandes males para o direito eleitoral foi a instituição da reeleição. Ela foi extremamente negativa".
Ser dúbio nas questões que dizem respeito a seu futuro político, mesmo que imediato, é uma das marcas registradas de Lula. Ele sempre agiu assim. Todas as vezes em que foi candidato – até mesmo na campanha para reeleição, em 2006 –, ele deixou para a última hora a definição. Seu instinto foi recompensado sempre. Como não existiu no passado recente – nem existe agora – no espectro de esquerda nenhum nome com a mesma estatura de Lula, a indefinição acaba conspirando a favor dele. Ela agora tem dois efeitos. Primeiro, mantém o nome de Lula sempre no primeiro plano da política, o que lhe agrada muito. Segundo, alimenta o entusiasmo em torno do terceiro mandato, o que ele afirma ser um estorvo. Lula pode mudar de idéia se sua continuação no Planalto for "a vontade do povo"? Devanir esteve com o presidente pelo menos quatro vezes desde que se começou a falar em terceiro mandato. Em nenhuma delas lhe foi pedido que abortasse a proposta. A primeira foi em 6 de novembro do ano passado, no gabinete de Lula. Além dos dois, estavam presentes o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, e o presidente do PT, Ricardo Berzoini. Lula perguntou: "Que história é essa de terceiro mandato, Deva?". Devanir explicou sua proposta. Lula apenas sorriu e completou: "É cada uma que me aparece...". Depois, estiveram juntos no Ano-Novo. Devanir avisou que, no início do ano legislativo, apresentaria a proposta. Já neste ano, o deputado foi uma vez ao gabinete presidencial e outra ao Palácio da Alvorada. Relatou como andava seu projeto. De acordo com o que disse a colegas, Lula jamais pediu que ele desistisse, embora tampouco tenha dado apoio explícito. "É lógico que se o Lula mandasse eu desistiria", disse o deputado a amigos. É o velho instinto de Lula de novo em ação. Com reportagem de Kalleo Coura
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