O ministro da Justiça não vê problema
em montar banco de dados contra adversários
Alexandre Oltramari
Sérgio Lima/Folha Imagem | Dida Sampaio/AE |
Erenice Guerra foi apontada como a mentora do dossiê contra o ex-presidente FHC, mas Tarso Genro diz que só é criminoso quem vazou |
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O governo se contorce há mais de vinte dias tentando apresentar uma explicação minimamente convincente para a montagem do dossiê com informações sobre as despesas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Primeiro, disse que a história não passava de uma grande mentira. Depois, admitiu que as informações integravam um inocente banco de dados montado a pedido do Tribunal de Contas da União. Por último, apontou como responsável pelo trabalho sujo um suposto espião que teria inventado tudo para provocar um escândalo. Na semana passada, o caso continuava sem solução – apesar das fartas evidências levando aos autores. Ainda assim, em uma estranha inversão de prioridades, a Polícia Federal foi convocada a ajudar, mas, em tese, apenas para descobrir quem revelou a existência do dossiê – não para apanhar quem o produziu. A primeira ação dos agentes foi apreender os computadores dos funcionários do Palácio do Planalto que supostamente tiveram acesso aos dados. A melhor contribuição para compreender a gênese do problema veio do ministro da Justiça, Tarso Genro. Para justificar a orientação do trabalho policial, ele disse que montar dossiês contra adversários políticos não só é necessário como também é correto. Ou seja, praticamente admitiu que o governo fez, sim, o dossiê, mas nada tem a ver com sua divulgação.
"Fazer relatórios, organizar dossiês de natureza política, coletar dados, fazer anotações para uso do administrador, nada disso é um tipo penal", disse o ministro em entrevista ao jornal Correio Braziliense na última sexta-feira. Em outras palavras, vasculhar as informações sobre um adversário não é crime, e, se não é crime, o governo pode fazê-lo, desde que não divulgue. É um conceito estarrecedor, principalmente vindo de quem veio. Tarso Genro tem a obrigação de zelar pelo estado de direito. Ao defender a possibilidade de a máquina pública ser acionada para atender a interesses políticos, o ministro abre as portas do governo a toda sorte de ilegalidade. Se isso virar regra, nada impede que o Banco do Brasil, por exemplo, produza dossiês com informações sobre a movimentação bancária dos parlamentares-correntistas, desde que, é claro, não as divulgue. Nada impede que a Receita Federal prepare um dossiê sobre partidos políticos que não cumprem integralmente suas obrigações fiscais, desde que também não as divulgue. Se por acaso as informações forem divulgadas, que se puna o responsável, independentemente do prejuízo que isso possa provocar aos personagens vítimas da arapongagem oficial.
Tropa de elite: na campanha de 2002, o PT montou esquadrão para produzir dossiês |
No caso do ex-presidente Fernando Henrique, deu-se que o dossiê foi feito, vazado em parte para parlamentares do governo e para jornalistas. Os primeiros usaram as informações para cochichar ao pé do ouvido dos adversários: "Cuidado, os gastos do seu presidente são mais difíceis de explicar do que os do meu". Os jornalistas deram notinhas em colunas reproduzindo mais ou menos o efeito do cochicho. Erenice Guerra, a secretária executiva da Casa Civil apontada como chefe da equipe de produção do dossiê, não sofreu ainda nenhuma admoestação. Ao contrário, ganhou um prêmio. Foi confirmada como a mais nova integrante do Conselho Fiscal do BNDES, o que lhe garantirá uma renda extra de 3 500 reais por mês. A depender de Tarso Genro, ela continuará sem ser incomodada. "Isso é selvageria. O governo está reeditando e enriquecendo as práticas mais nefastas do passado. A privacidade das pessoas não pode ser usada no jogo político em hipótese alguma. Nem Milton Campos, o primeiro ministro da Justiça do regime militar, foi capaz de dizer isso", afirma Paulo Brossard, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal.
As declarações do ministro Tarso Genro só surpreendem porque ele defende a confecção de dossiês políticos dentro do governo. Os petistas, porém, há muito tempo descobriram na produção de dossiês um método eficaz para combater os adversários. Não é de agora. Uma reportagem de VEJA publicada em 2003 mostrou que o partido reuniu uma espécie de tropa de elite para fulminar os adversários do candidato Lula à base de dossiês na campanha presidencial de 2002. O grupo se reunia em São Paulo, era financiado com dinheiro da CUT e tinha entre seus generais figuras como Ricardo Berzoini, atual presidente do partido, e Osvaldo Bargas, amigo pessoal do presidente Lula. O trabalho foi concluído com discrição, embora seus resultados tenham provocado um tremendo estrago nas campanhas adversárias. O êxito em operações dessa natureza levou Ricardo Berzoini e Osvaldo Bargas a tentar repetir a dose na campanha da reeleição, em 2006, usando dos mesmos ardis. Daquela vez, porém, deu tudo errado. A polícia prendeu uma parte do grupo no momento em que tentava comprar um dossiê contra os tucanos. Tarso Genro não era ministro da Justiça, mas mesmo assim ninguém foi punido.
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1. Afinal, o que são os cartões corporativos do governo? Em 2001, o governo começou a distribuir cartões de crédito a seus funcionários de mais alto escalão. Eles deveriam ser usados por ministros e seus assessores principalmente em viagens para pagar despesas imprevistas decorrentes do exercício do cargo. Também serviriam para que as repartições públicas tivessem mais flexibilidade para fazer compras que não precisam de licitação. Em tese, dariam mais transparência aos gastos, já que a natureza das despesas fica discriminada nos extratos. |
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2. Eles continuam de uso exclusivo de ministros e seus assessores? Não. Inicialmente, os cartões realmente só eram utilizados por ministros, secretários e pelos responsáveis pelas finanças das repartições públicas. Atualmente, porém, seu uso está disseminado entre todas as categorias - de policiais federais a antropólogos da Funai. O campeão do crédito fácil é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O IBGE entregou 1.746 cartões a seus servidores. Só em sua unidade paulista, 260 servidores desfrutam esse benefício. |
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3. Qual é, então, o critério de distribuição dos cartões? Nenhum. Não existe critério que estabeleça quais funcionários podem ter nas mãos um desses cartões. Pela legislação atual, os portadores de cartões são escolhidos segundo a "necessidade de cada repartição". Isso significa que, na prática, cada secretaria, ministério ou fundação decide quem serão os felizardos agraciados com um pedacinho do Tesouro para gastar. |
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4. Quantos desses cartões estão em uso? Segundo levantamento do Palácio do Planalto feito a pedido de VEJA, no início de 2008 havia 11.510 cartões nos bolsos de autoridades. O número é mais de três vezes superior ao registrado em 2004, quando havia 3.167 unidades. As despesas subiram na mesma velocidade. |
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5. Qual a despesa desses cartões para os cofres públicos? Confira no gráfico abaixo a evolução dos gastos realizados com os cartões de crédito corporativos do governo. |
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6. É possível rastrear todas essas despesas? Não. Só é possível verificar o destino de 25% delas. Tome-se, por exemplo, o ano de 2007, em que a despesa total atingiu 78 milhões de reais. É impossível determinar como foram gastos nada menos do que 58 milhões de reais. Isso porque esse montante foi sacado em dinheiro vivo em caixas eletrônicos. Aparentemente, ninguém controla esses gastos. |
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7. Há um limite para gastos com o cartão? É quase inacreditável, mas o governo não sabe responder a essa questão. Quando a farra dos cartões veio a público, o governo divulgou que os cartões tinham limite mensal de 8.000 reais. Sabe-se, porém, que a ex-secretária da Igualdade Racial torrou, em média, 14.300 reais por mês. Cada repartição, além de definir quem terá direito aos cartões, também fixa o limite que cada um poderá gastar. O governo nunca se preocupou em impor algum tipo de controle. Os esforços foram feitos no sentido oposto, o de aumentar a liberalidade. Nos meses que antecederam o estouro do escândalo, o Planalto e o Ministério do Planejamento estimularam a emissão de novos cartões. A alegação é a de que o uso deles aumentaria a transparência dos gastos, pois a fatura é de fácil consulta e pode ser publicada na internet. |
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8. O escândalo pode levar a uma alteração na regulação a respeito?
É possível. Depois que a farra com os cartões corporativos foi descoberta, o Tribunal de Contas da União decidiu fazer um mutirão para analisar todas as faturas dos cartões oficiais. O tribunal pretende processar quem não apresentar nota fiscal ou recibo de cada uma das despesas efetuadas com o cartão. A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, também decidiu agir. Determinou à Controladoria-Geral da União que inicie imediatamente uma auditoria sobre a gastança. A ministra colocou cadeado em um cofre que já havia sido arrombado, mas, se o controle funcionar daqui para a frente, será um avanço. Ela sinalizou ainda que o uso dos cartões pelos ministros será reavaliado. O Ministério do Planejamento, por sua vez, estuda substituir os cartões corporativos dos ministros por diárias de viagem em território nacional. Para viagens internacionais, os pagamentos já são feitos por meio de diárias.