Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 19, 2008

Péricles, de Claude Mossé

O rei do discurso

Por que o legado de Péricles ao presente está
naquilo que ele disse, e não naquilo que ele fez


Carlos Graieb

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Trecho do livro

Ah, os gregos. Eles sabiam como tratar um político. Tome-se o caso de Péricles, o mais poderoso líder do século de ouro ateniense, o quinto antes de Cristo. Sua cabeçorra era alvo de piadas e o poeta Cratino não hesitou em apelidá-lo de "Zeus schinocéfalo" – o deus da cabeça de cebola. Na vida privada, seu vício mulherengo foi denunciado sem pudor nem piedade. Ele usava a casa de um protegido para encontrar prostitutas e parece que seduziu até a mulher de Xantipo, seu filho. Péricles foi um pai relapso, exceto em relação ao seu último rebento. Esse nasceu de Aspásia, uma charmosa cortesã, e para registrá-lo como cidadão Péricles não hesitou em violar a lei. Seus estratagemas para cativar o povo atraíram a censura de filósofos como Sócrates, segundo o qual Péricles teria tornado os atenienses "preguiçosos e ávidos por dinheiro". O filósofo se referia não apenas à invenção, pelo célebre governante, da mistoforia – o pagamento de salário aos ocupantes de um cargo oficial –, mas também a benesses com verba pública instituídas por ele, como uma espécie de "bolsa-teatro" ou ingresso subvencionado para espetáculos artísticos. Pouco antes de morrer, Péricles foi condenado por peculato e teve de arcar com uma pesada multa. Sua carreira foi uma das primeiras a sugerir aos gregos o uso pejorativo da palavra "demagogo" – não mais um simples condutor político, mas um manipulador das massas.

Tudo isso se sabe de Péricles. E, se depois de tudo isso ele ainda sobrevive com honra para a posteridade, é sinal de que teve méritos reais. Um bom retrato do homem e de sua época está no livro da historiadora francesa Claude Mossé Péricles – O Inventor da Democracia (tradução de Luciano Vieira Machado; Estação Liberdade; 261 páginas; 47 reais). O subtítulo expressa a tese central da autora: Péricles completou o desenho institucional da democracia ateniense. Sua principal contribuição foi justamente a mistoforia, aquela prática execrada por Sócrates: longe de constituir uma forma de enriquecer aliados (já que a rotação nos cargos públicos estava assegurada por lei), ela permitiu que os cidadãos pobres pudessem se ausentar do trabalho para se envolver, ao menos temporariamente, nas questões políticas.

Em sua "máquina administrativa", contudo, Atenas nada tem a ver com o mundo atual. Por isso, é de outra esfera que advém o legado de Péricles para o presente. Deve-se a ele a mais gloriosa defesa da democracia feita na Antiguidade: a Oração Fúnebre em homenagem aos primeiros mortos da Guerra do Peloponeso. Nesse discurso, Péricles fez o elogio de uma forma de vida calcada em valores como a igualdade perante a lei e a recompensa do mérito individual. Mais ainda: ele usou seu formidável talento retórico para cultivar nos seus ouvintes o sentimento cívico e o amor às instituições. Aí está o grande exemplo de Péricles para os governantes. O contrário disso é a falação política enroladora, a bravata de palanque, a sempre estéril e facciosa exaltação do "meu governo" sobre "o governo dos outros". Pior ainda: é política do primeiro parágrafo.

A voz da democracia

"Nosso regime político não se propõe tomar como modelo as leis de outros: antes somos modelo que imitadores. Como tudo nesse regime depende não de poucos, mas da maioria, seu nome é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências particulares, no que se refere à atribuição de honrarias o critério se baseia no mérito e não na categoria a que se pertence; inversamente, o fato de um homem ser pobre não o impede de prestar serviços ao Estado."

Trecho da Oração Fúnebre, de Péricles, segundo o livro
A Guerra do Peloponeso, do historiador Tucídides


LIVROS

Trecho de Péricles – O Inventor da Democracia,
de Claude Mossé

1. OS ALCMEÔNIDAS

Era, de fato, a uma família um tanto excepcional que pertencia o pretendente ateniense de Agariste, Mégacles, bisavô materno de Péricles. Definamos em primeiro lugar o que se entende aqui por "família". No século V, para designar os Alcmeônidas, emprega-se o termo genos*. Durante muito tempo, os antropólogos consideraram esses géne como "clãs", que revelariam uma estrutura gentílica das sociedades gregas arcaicas. Atualmente, abandonou-se essa interpretação, privilegiando-se, no genos, o caráter aristocrático1. Sabe-se, com efeito - e quanto a esse aspecto os arqueólogos trouxeram inúmeros testemunhos -, que depois da destruição dos palácios micenianos, quando se reconstituíram agrupamentos de onde viria a nascer a cidade, estes se organizaram em torno de uma ou várias "famílias", atribuindo-se freqüentemente, mas não necessariamente, um ancestral "heróico".2 No caso dos Alcmeônidas, embora essa tradição só se encontre nos autores tardios, o ancestral heróico teria sido Nestor, o rei de Pilos. Por outro lado, muitas vezes essas famílias aristocráticas estavam ligadas a um culto, o culto do herói fundador do genos ou de um herói local sobre a tumba do qual se reuniriam os membros do genos. No que diz respeito aos Alcmeônidas, não se encontra o menor sinal de tal culto. É, pois, a um Alcmêon, ancestral distante de quem nada se sabe, que a família deve seu nome.

A TENTATIVA DE CÍLON

Qualquer que seja sua origem, o fato é que essa família pertencia ao grupo dos eupátridas, "nobres" que partilhavam as funções que garantiam a direção dos negócios da cidade, e cuja linha de frente era formada pelo arcontado. No relato que compõe a primeira parte da Constituição de Atenas, o autor, Aristóteles ou um de seus discípulos, conta que o arcontado derivara da divisão do poder real primitivo para se tornar uma magistratura, a princípio, vitalícia, depois, concedida por dez anos, tornando-se, finalmente, anual. Assim, a cada ano designavam-se três arcontes*: o rei, encarregado principalmente dos assuntos religiosos, o polemarco*, comandante supremo do exército, e o arconte epônimo, que dava seu nome ao ano e presidia o Conselho do Areópago*, formado de ex-arcontes. Aos três arcontes dos primeiros tempos acrescentaram-se, posteriormente, seis tesmotetas*, guardiões das thesmoi, as regras comuns.

Foi como arconte que o primeiro alcmeônida conhecido historicamente, Mégacles, veio a desempenhar um papel importante. O período de seu arcontado situa-se no último terço do século VII, sem que se possa precisar melhor (636/635; 632/631; 628/627; 624/623?). Como muitas cidades gregas, Atenas passava então por uma crise que se relacionava, pelo menos do que se depreende dos relatos posteriores, com o fenômeno do monopólio das melhores terras e, no caso de Atenas, o endividamento de uma parte do campesinato. Como aconteceu em determinadas cidades, aqueles que buscavam tomar o poder procuraram tirar vantagem dessa crise. Daí o desenvolvimento da tirania no curso do século VI.3 Mencionou-se a dos Ortagóridas de Sicione. Poder-se-iam citar também os Cipsélidas de Corinto ou ainda um certo Teágenes de Mégara. Foi justamente com o apoio desse Teágenes, de quem era genro, que Cílon, que fora o vencedor em Olímpia e gozava de grande prestígio em função dessa vitória, tentou assenhorear-se de Atenas, apoderando-se da Acrópole. Heródoto (V, 71) fala somente de tentativa, mas o relato de Tucídides, muito mais completo, dá a entender que Cílon não apenas se apoderou da Acrópole, mas também resistiu a um longo cerco. Os atenienses, convocados pelo arconte, vieram em massa dos campos para tentar desalojá-los, ele e seus sequazes.

Com o passar do tempo, os atenienses ficaram cansados do sítio e muitos deles foram embora, passando a guarda aos nove arcontes, aos quais deram também plenos poderes para resolver o caso como melhor lhes parecesse [naquele tempo, com efeito, os nove arcontes tinham em suas mãos a maior parte da administração pública]. Cílon e seus homens, sitiados como estavam, encontravam-se numa situação difícil, porque lhes faltavam água e víveres. Cílon e seu irmão conseguiram escapar. Os outros, porém, desesperados, alguns até morrendo de fome, instalaram-se como suplicantes no altar da Acrópole. Os atenienses encarregados da guarda do templo, vendo que eles morriam no santuário, obrigaram-nos a sair: tiraram-nos de lá com a promessa de não lhes fazer mal, depois os mataram; no trajeto, houve alguns que se puseram ao lado das Deusas Veneráveis e foram executados. Por aquele ato, tanto os encarregados da guarda quanto os seus descendentes foram declarados malditos e pecadores contra a deusa (I, 126, 8-11).

O relato de Tucídides, da mesma forma que o de Heródoto, não faz referência nominal aos Alcmeônidas. Mas tanto um quanto outro, considerados em seu contexto, não deixam margem a nenhuma dúvida. Heródoto situa o seu logo depois de expor as reformas de Clístenes e a petição, formulada pelo rei espartano Cleômenes, chamado por Iságoras, para que os "impuros" fossem expulsos de Atenas (V, 70). Quanto a Tucídides, ele explica, no relato da tentativa de Cílon, a exigência dos lacedemônios, às vésperas da eclosão da guerra do Peloponeso, de que os atenienses "afastem a desonra cometida contra a Deusa", aqueles lacedemônios que "sabiam que Péricles, filho de Xantipo, estava implicado na maldição pelo lado materno" (I, 127, 1). Somente Plutarco, em sua Vida de Sólon (XII, 1), cita o arconte Mégacles como sendo, junto com os outros arcontes, responsável pelo sacrilégio cometido contra os sequazes de Cílon. Mas, nessa mesma Vida de Sólon (XII, 1), Plutarco, baseando-se nos arquivos do santuário de Delfos, lembra que o estratego que comandava o contingente ateniense quando da primeira guerra sagrada era Alcmêon. A primeira guerra sagrada para defender o santuário de Delfos teria ocorrido no começo do século VI, e esse Alcmêon seria o filho de Mégacles. O que nos permite supor que o exílio dos "sacrílegos" foi relativamente breve. No entanto, esse mesmo Alcmêon também iria inaugurar uma política de aliança com Delfos, que não deixaria de ter conseqüências para os Alcmeônidas.

OS ALCMEÔNIDAS E DELFOS

Aqui se coloca um outro relato tomado de empréstimo a Heródoto, que figura no livro VI, pouco antes das núpcias de Agariste. A anedota se situaria, cronologicamente, pouco antes da guerra sagrada, o que não deixa de implicar um problema, porque se trata do encontro entre Alcmêon, filho de Mégacles, e o rei da Lídia, Creso. Ora, o reino de Creso se inicia pelo menos trinta anos depois. Imagina-se, portanto, que, se a história é verdadeira, tratar-se-ia antes de Aliato. Heródoto conta, pois, que "Creso" teria convidado Alcmêon para ir a Sardes a fim de agradecer-lhe, com um magnífico presente, por ele ter ajudado, em Delfos, seus enviados que tinham ido consultar o oráculo. O presente consistia em levar tanto ouro quanto pudesse carregar sozinho, de uma só vez. A Lídia, como se sabe, era muito rica em ouro, trazido pelas águas do Patolo.

Para aproveitar-se do presente dado nessas condições, Alcmêon empregou este engenhoso estratagema: vestiu um grande chiton [túnica], deixando que se formasse um bolso bem grande na cintura; calçou botas altas, as mais largas que pôde encontrar, e penetrou assim na sala do tesouro, para onde o levaram. Lá ele se lançou sobre um monte de ouro em pó, começou por colocar ao longo de suas pernas a maior quantidade de ouro que coubesse em suas botas, encheu completamente o bolso da túnica, polvilhou os cabelos com ouro, pôs mais um tanto em sua boca e saiu da sala do tesouro mal conseguindo arrastar os pés, parecendo-se com qualquer coisa, menos com um ser humano, a boca cheia e o corpo todo inchado. Ao ver aquilo, Creso teve um acesso de riso. Ele deu a Alcmêon tudo o que ele tinha apanhado, e lhe deu outros presentes de menor valor. Foi assim que aquela casa ficou poderosamente rica, de forma que Alcmêon manteve os animais de uma quadriga e ganhou o prêmio em Olímpia (VI, 125).

Não se sabe que crédito se pode dar a essa história edificante, talvez divulgada pelos adversários da família, quando ela se tornou poderosa na cidade. Não obstante, ela revela certos traços que indicam a posição original dos Alcmeônidas na história de Atenas. Em primeiro lugar, observem-se os laços com Delfos. Foi por ter servido como uma espécie de fiador ao rei "bárbaro" da Lídia (e pouco importa que se tratasse de Aliato ou de Creso), junto aos sacerdotes de Delfos, que Alcmêon em seguida veio a se beneficiar, numa lógica que é a do contradom, da generosidade dele. Isso é de surpreender, uma vez que os Alcmeônidas tinham sido expulsos de Atenas como sacrílegos. Temos de admitir que a "política" de Delfos podia levar em conta circunstâncias outras que não as estritamente religiosas. E se, como se supõe, o Alcmêon da anedota é o mesmo Alcmêon que comandou o contingente ateniense quando da primeira guerra sagrada, há menos motivos para se espantar de uma tal influência. Sabe-se, aliás, que os laços da família com os sacerdotes de Delfos foram se tornando mais estreitos nas décadas seguintes. Quando o templo de Apolo foi destruído por um incêndio em 548, foram os Alcmeônidas que financiaram, em parte, a reconstrução - talvez com o ouro do rei lídio. E foi também depois de consultar o oráculo de Delfos que Clístenes, o filho de Mégacles e de Agariste, do qual já falamos, iniciou sua grande reforma das instituições atenienses.

1. Sobre o genos, a obra de referência é a de F. Bourriot, Recherches sur la nature du genos, Paris: Honoré Champion, Lille: Atelier Reproduction de Thèses, Université de Lille, 1976. Sobre as tribos e seu lugar na organização da cidade arcaica, ver D. Roussel, Tribu et cité, Paris: Belles Lettres, 1976.
2. Sobre a construção da cidade depois do desmoronamento dos palácios micenianos, ver A. Schnapp-Gourbeillon, Aux origines de la Grèce (XIII-VIII siècles avant notre ère). La genèse du politique, Paris: Belles Lettres, 2002. atenas antes de péricles
3. Ver C. Mossé, La Tyrannie dans la Grèce antique, Paris: PUF, 1989, p. 3-9. os alcmeônidas


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