Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 19, 2008

Os Espólios de Poynton, de Henry James

Mobília moral

Como o americano Henry James fez da
decoração o tema de um grande romance


Carlos Graieb

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Trecho do livro

Publicado originalmente em 1896, Os Espólios de Poynton (tradução de Onédia Célia Pereira de Queiroz; Companhia de Bolso; 219 páginas; 19,50 reais) é o melhor romance já escrito sobre a decoração de interiores. Parece pouco? Parece fútil? Acontece que o autor, o americano Henry James, era um homem sutil. As limitações de uma história que tivesse como tema mesinhas e bibelôs eram evidentes. Assim, num estilo que os franceses chamariam de démeublé – econômico nas descrições, e portanto "sem mobília" –, ele mal se ocupou de especificar as relíquias que estão no centro da intriga. Voltou-se, em vez disso, para outra questão: a maneira como as coisas de que se é dono refletem a história e o caráter de uma pessoa.

Numa casca de noz, o enredo é o seguinte: Owen vai casar-se, e com isso herdará Poynton, uma casa repleta de objetos extraordinários. Sua mãe, no entanto, é contra o casamento. Acredita que Mona, a noiva, destruirá, com sua vulgaridade, o santuário a cuja decoração ela dedicou sua vida e seus talentos. Mrs. Gereth seqüestra a mobília para criar um impasse com o filho. Ao mesmo tempo, tenta impingir a ele outra mulher, Fleda, em quem identifica um refinamento semelhante ao seu. Fleda gosta de Owen e gosta de Poynton. Além disso, tem escrúpulos, e por isso hesita sobre como agir com aquele jovem honesto e um tanto ingênuo.

A substância moral de cada personagem feminina se torna aparente na sua relação com as riquezas de Poynton. Mrs. Gereth é dominada pela paixão por sua coleção de objetos. Ela vê tudo à sua volta com olhos de colecionadora – até mesmo Fleda, descrita a certa altura como "um de seus melhores achados". Mona avalia Poynton (e também seu noivo) por lentes pecuniárias. E Fleda? Ela não é cega a nenhum desses dois aspectos, o estético e o financeiro, mas o que mais lhe interessa é sua liberdade: até que ponto a posse de bens (ou de um marido) também vai aprisioná-la e reduzir seus horizontes? Muito do drama de Os Espólios de Poynton está ligado à falta de alternativas de vida, fora do casamento, para uma mulher do século XIX. Mas o problema "filosófico" da posse e da aquisitividade, segundo as reflexões de Fleda Vetch, é igualmente essencial ao livro. Quando James escreveu Os Espólios de Poynton, a sociedade de consumo apenas engatinhava. Pode-se dizer que o tema do livro ainda não envelheceu...


LIVROS

Trecho de Os Espólios De Poynton,
de Henry James

Capítulo 1

Mrs. Gereth havia dito que iria à igreja com os outros, mas de repente teve a impressão de que não conseguiria esperar nem mesmo até a hora do serviço religioso para aliviar a tensão: o café- da-manhã em Waterbath era uma refeição pontual e tinha ainda uma hora à sua disposição. Sabendo que a igreja ficava perto, preparou-se em seu quarto para um pequeno passeio rural e, descendo novamente as escadas, atravessando corredores e observando as imbecilidades da decoração, a indigência estética do amplo casarão, sentiu voltar a maré de irritação da noite anterior, a repetição de todo o sofrimento que lhe causavam a fealdade e a estupidez. Por que consentia em tais relações? Por que se expunha tão imprudentemente? Ela tivera, só Deus sabe, suas razões, mas a experiência toda prometia ser mais dolorosa do que temera. Libertar-se e sair para o ar livre, para a presença do céu e das árvores, flores e pássaros, era o que todos os seus nervos pediam. Provavelmente as flores em Waterbath teriam cores discordantes e os rouxinóis deviam desafinar; mas lembrou-se de ter ouvido descreverem o lugar como possuidor de belezas geralmente ditas naturais. Havia um número suficiente de qualidades que evidentemente não possuía. Era-lhe difícil acreditar que uma mulher pudesse mostrar-se apresentável depois de ficar acordada durante horas por causa do papel de parede de seu quarto; no entanto, ao cruzar o vestíbulo farfalhando seu luto de viúva recente, sentiu-se encorajada pela consciência, que sempre aumentava o fervor de seus domingos, de que era, como sempre, a única pessoa na casa incapaz de usar na sua indumentária a horrível marca da elegância excepcional que seria conspícua na mulher de um merceeiro. Ela preferiria morrer a parecer endimanchée.

encontrando-se as outras mulheres ocupadas ataviando-se precisamente para aquela urgente finalidade. Chegando ao gramado ela reconheceu que, com um local, uma vista que chamasse a atenção, que servisse de exemplo para os moradores, Waterbath poderia ser encantadora. Como ela mesma, com tais elementos nas mãos, teria aproveitado as belas sugestões da natureza! De repente, numa volta do caminho, encontrou um dos membros do grupo, uma jovem, sentada num banco, em profunda e solitária meditação. Havia observado a moça durante o jantar e depois dele; estava sempre olhando as moças com referência, apreensiva ou especulativa, a seu filho. Lá no fundo de seu coração tinha a certeza de que Owen, apesar de todas as feitiçarias da mãe, acabaria casando-se com uma roceira; e isso sem nenhuma evidência que pudesse apresentar como satisfatória, mas simplesmente com o profundo mal-estar, a crença de que uma sensibilidade tão especial como a sua só poderia ter sido infligida a uma mulher, como fonte de angústia. Tinha que ser seu destino, seu castigo, sua cruz suportar que lhe trouxessem de forma revoltante uma roceira para dentro de sua casa. Essa moça (havia duas de sobrenome Vetch), não se sobressaía, mas Mrs. Gereth, perscrutando a mesmice por algum sinal de vida, fora imediatamente capaz de classificar tal figura como sendo, por enquanto, a menor de suas aflições. Fleda Vetch estava vestida com uma idéia, embora, talvez, não com muito mais do que isso; e foi o que criou um vínculo onde não havia nenhum outro, especialmente porque nesse caso a idéia era real, não uma imitação. Fazia muito tempo que Mrs. Gereth adquirira a certeza de que o temperamento de uma roceira poderia facilmente combinar com uma certa beleza eventual. Havia cinco moças no grupo, e a beleza dessa (ela era esbelta, pálida, de cabelos negros) tinha menos possibilidade do que a das outras de ocasionar uma troca de banalidades. As duas mais jovens eram filhas dos donos da casa, os Brigstock, e eram, em especial, irritantemente "encantadoras". Um segundo olhar, bem penetrante, para a jovem à sua frente deu a Mrs. Gereth a tranqüilizadora con- fiança de que ela também não estava ciente de parecer bela e atraente. Elas ainda não tinham conversado, mas havia um ponto que iria efetivamente aproximá-las se a moça se mostrasse minimamente consciente da comunhão entre elas. Ela levantouse do banco com um sorriso que só parcialmente dissipou a prostração que Mrs. Gereth percebera em sua atitude. A senhora mais velha fê-la sentar-se novamente, e, por um minuto, sentadas juntas, seus olhos se encontraram e enviaram sondagens mútuas. "Posso confiar em você? Posso falar?" cada uma delas disse à outra, reconhecendo rapidamente, quase proclamando, sua necessidade comum de fuga. A tremenda simpatia, como veio a ser denominada, que Mrs. Gereth estava destinada a sentir por Fleda Vetch começou virtualmente com a descoberta de que a pobre garota fora levada a fugir mais rapidamente ainda do que ela. Que a pobre garota não menos prontamente percebesse até onde poderia chegar agora ficou provado pela imensa cordialidade com que ela imediatamente manifestou-se:

- Não é medonho demais?

- Horrível... horrível! - exclamou Mrs. Gereth com uma risada. - E é realmente um alívio poder dizê-lo.

Ela tinha a idéia, pois era o que aspirava, de que conseguira, com sucesso, fazer segredo daquela singular esquisitice sua, a propensão para sentir-se infeliz na presença da feiúra. Sua paixão pelo belo era a causa disso, mas era uma paixão que achava que nunca apregoava, nem dela se jactava, contentando-se em deixá-la regular seus passos e mostrar-se discretamente em sua vida, lembrando-se sempre de que há poucas coisas mais silenciosas do que uma profunda devoção. Estava portanto espantada com a perspicácia da mocinha, que já colocara o dedo na ferida. O que era medonho, o que era horrível, era a profunda feiúra de Waterbath, e foi sobre esse fenômeno que as duas mulheres conversaram enquanto se sentavam à sombra, restaurando suas forças sob o céu amplo e tranqüilo, de onde não pendia nenhuma louça azul ordinária. Era uma feiúra fundamental e sistemática, resultado da natureza anormal dos Brigstock, em cuja composição o critério de bom gosto fora absurdamente omitido. Na arrumação de sua residência algum outro critério, extraordinariamente vigoroso, mas inábil e obscuro, havia operado em seu lugar, com conseqüências desalentadoras, conseqüências que tomaram a forma de uma inanidade sem limites. A casa era deveras ruim, mas passaria se pelo menos a tivessem deixado em paz. Essa piedosa generosidade estava fora do alcance deles; eles a tinham sufocado com ornamentos ordinários e arte sem valor, com estranhas excrescências e panos abundantes, com bibelôs que poderiam servir de mimos para criadas e utensílios espantosos que poderiam servir de prêmios para cegos. Eles haviam se perdido completamente no que diz respeito a tapetes e cortinas; tinham um instinto infalível para o erro gritante e estavam tão cruelmente condenados a esse fado que se tornavam quase trágicos. A sala de estar deles, Mrs. Gereth abaixou a voz ao mencioná-la, fazia seu rosto arder, e as novas amigas confidenciavam uma à outra que em seus aposentos haviam chegado às lágrimas. No da mais velha havia uma coleção de aquarelas cômicas, uma brincadeira familiar feita por algum gênio da família, e no da mais jovem, uma lembrança de alguma exposição comemorativa de centenário, ou outra coisa qualquer, às quais aludiram estremecendo. A casa estava despropositadamente cheia de lembranças de lugares mais feios ainda do que ela e de coisas que seria um dever piedoso esquecer. O máximo do horror eram as toneladas de verniz, algo ostentoso e malcheiroso, com que tudo era lambuzado: Fleda Vetch estava convencida de que a sua aplicação com as próprias mãos enquanto empurravam alegremente uns aos outros, constituía o divertimento dos Brigstock em dias de chuva.

Quando, enquanto as críticas se intensificavam, Fleda insinuou que algumas pessoas talvez pudessem apreciar Mona, Mrs. Gereth interrompeu-a com um gemido de protesto, uma abafada exclamação familiar de "Ai meu Deus!". Mona era a mais velha das três, a de quem Mrs. Gereth mais suspeitava. Ela confidenciou à sua jovem amiga que fora a sua suspeita que a trouxera a Waterbath; e isso estava dando resultado, pois no mesmo instante, como um refúgio, como uma solução, ela se agarrara à idéia de que alguma coisa poderia ser feita com a ajuda da moça à sua frente. Foi a sua fantástica descoberta, de qualquer modo, que intensificara o choque, fizera-a perguntar-se, com um terrível calafrio, se o destino poderia realmente estar tramando sobrecarregá- la com uma nora criada em tal lugar. Ela vira Mona em seu ambiente apropriado e vira Owen, belo e obtuso, seguindo- a por toda a parte; mas o efeito dessas primeiras horas não fora felizmente o de obscurecer a perspectiva. Tinha certeza de que nunca seria capaz de aceitar Mona, mas, afinal, não havia absolutamente certeza alguma de que Owen lhe pediria tal coisa. Ele sentara-se ao lado de outra pessoa no jantar e depois conversara com Mrs. Firmin, que era tão pavorosa quanto as outras, mas compensadoramente casada. A obtusidade de Owen, que na sua necessidade de desabafar ela mencionava abertamente, tinha dois aspectos: um deles, sua monstruosa falta de gosto, o outro, sua exagerada cautela. Se viesse a acontecer o problema de impor Mona de maneira autoritária, não haveria necessidade de preocupar-se, pois esse era raramente o seu modo de proceder.

A pedido de sua companheira, que perguntara sobre as maravilhas do lugar, Mrs. Gereth havia começado a dizer algumas palavras sobre Poynton; mas ouviu um barulho de vozes que a fez parar de repente. No momento seguinte ficou de pé, e Fleda pôde então perceber que seu temor não arrefecera de modo algum. Atrás do lugar onde haviam estado sentadas o terreno caía com alguma inclinação, formando um extenso barranco coberto de grama, o qual Owen Gereth e Mona Brigstock (vestida para ir à igreja, mas fazendo disso um deboche) tentavam no momento escalar ajudando-se um ao outro alegremente. Quando eles chegaram à parte plana do terreno Fleda conseguiu entender o significado da exclamação com a qual Mrs. Gereth expressara suas ressalvas em relação à personalidade de Miss Brigstock. A moça estivera rindo e brincando, mas essa circunstância não havia contribuído com sequer uma sombra de expressão em seu semblante. Alta, esbelta e loira, de pernas e braços longos, e estranhamente ataviada, ela ficou lá em pé, sem ex- pressão alguma nos olhos ou outra intenção perceptível em qualquer de seus outros traços. Ela pertencia ao tipo de pessoa em que a fala é uma involuntária emissão de sons, e o mistério do ser é guardado de modo impenetrável e incorruptível. Sua expressão seria provavelmente bonita se ela tivesse alguma, mas o que quer que comunicasse, ela comunicava, da maneira que melhor conhecia, sem demonstrações. Não era o caso de Owen Gereth, que as evidenciava bastante e todas muito simples e imediatas. Robusto e franco, eminentemente natural e, no entanto, perfeitamente correto, ele parecia despropositadamente animado e agradavelmente insípido. Como sua mãe e como Fleda Vetch, mas não pela mesma razão, esse jovem par saíra para dar uma volta antes da igreja.


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