As oportunidades e os desafios de um mundo
em que, pela primeira vez, mais da metade da
população vive nas cidades
Thomaz Favaro
Werther Santana/AE |
ESTAÇÃO SÉ, EM SÃO PAULO |
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Duzentos anos atrás, apenas 3% da população mundial vivia em cidades. Há um século, na esteira da Revolução Industrial, a porcentagem tinha subido para 13% – ainda uma minoria em um planeta essencialmente rural. Em algum momento deste ano, de acordo com estimativas das Nações Unidas, pela primeira vez na história o número de pessoas que vivem em áreas urbanas ultrapassará o de moradores do campo. Segundo o mesmo estudo, nas próximas décadas praticamente todo o crescimento populacional do planeta ocorrerá nas cidades, nas quais viverão sete em cada dez pessoas em 2050. A população rural ainda deve aumentar nos próximos dez anos, antes de entrar em declínio gradativo. A atual migração para as cidades é de tal ordem que se pode compará-la, de forma alegórica, a um novo salto na evolução. O Homo sapiens cedeu lugar a seu sucessor, o Homo urbanus.
O que move a humanidade em direção à vida de colméia? Estima-se a idade do homem moderno em 130 000 anos. A agricultura e a vida sedentária, que permitiram viver em aldeias ou vilas, existem há apenas 11 000 anos. Cidades da forma que as conhecemos hoje só apareceram 5.500 anos depois na Mesopotâmia e no vale do Rio Nilo, no Egito. Desde cedo, a cidade teve o mérito de dar ao homem a possibilidade de evoluir além da luta pela sobrevivência pura e simples. Sua primeira função foi de local de proteção, de armazenagem de alimentos e de entreposto de trocas. A segurança urbana permitiu o desenvolvimento do trabalho especializado, que liberou as pessoas para se engajar em atividades como as artes, a ciência, a religião e a inovação tecnológica. A lei é a essência da vida urbana desde os tempos babilônicos. Primeiro, porque as cidades são centros de comércio, e essa atividade exige regulamentos. Segundo, porque elas atraem diferentes tipos de morador, que precisam viver juntos e dependem de normas comuns de comportamento. "É graças a esse convívio que o ser humano desenvolve sua capacidade de criação e inovação", diz a arquiteta Raquel Rolnik, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
O filósofo grego Platão, no diálogo Fedro, diz que o campo e as árvores nada podem lhe ensinar, ao contrário dos homens da cidade. É uma afirmação exagerada, mas que mostra o princípio básico pelo qual os seres humanos habitam as áreas urbanas. O lugar que melhor sintetiza a urbanização em escala global é a megalópole. Esse é o nome que se dá aos aglomerados urbanos com mais de 10 milhões de habitantes. Um em cada 25 habitantes do planeta vive em uma das dezenove megalópoles existentes. Seus moradores desfrutam uma vasta gama de serviços especializados, comércio disponível noite e dia, programas culturais para todos os gostos, infinitas alternativas de lazer – mas o trânsito pode ser tão congestionado que se torna difícil usufruir as ofertas ou a preocupação com a segurança é tal que obriga os pais a criar os filhos sob um controle extenuante. Essa situação é agravada pelo fato de quinze desses gigantes estarem localizados em países pobres ou emergentes. Em menos de vinte anos, quando as megacidades forem 27, pelo menos 22 estarão em países em desenvolvimento.
As cidades geralmente representam um peso desproporcional na economia nacional. A Grande São Paulo responde por 21% do produto interno bruto do Brasil. Sua produção de riquezas supera a soma das do Peru, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Equador. Mumbai é responsável por 40% da arrecadação de impostos na Índia. O prefeito de Tóquio representa mais eleitores que o presidente de Portugal. Se nos últimos séculos os países foram os principais eixos da economia mundial, hoje esse papel cabe às metrópoles. Não é difícil entender alguns fatores básicos que contribuem para isso. A densidade populacional ajuda a reduzir os custos de produção e, ao mesmo tempo, concentra enormes mercados consumidores de bom poder aquisitivo. A convivência e a diversidade cultural também catalisam os processos de inovação, um dos motores do capitalismo. Uma equipe da Universidade de Loughborough, na Inglaterra, mapeou o que chamou de "cidades globais". Foram identificadas 55 cidades, de Seul a Santiago do Chile, que servem não somente como centros financeiros nacionais, mas também como pontos de conexão de pessoas e empresas em escala mundial. Em comum elas têm grandes mercados consumidores, os melhores serviços para o desenvolvimento de empresas multinacionais e são cenário para a tomada de decisões a respeito da economia internacional. As trinta principais cidades da lista abrigam apenas 4% da população mundial, mas são responsáveis por 16% da riqueza produzida. Nas palavras da americana Saskia Sassen, da Universidade Colúmbia e autora de A Cidade Global: "Se alguém quer levar seu produto ou serviço para além de suas fronteiras nacionais, fatalmente terá de passar por uma dessas cidades".
O continente em que a urbanização ocorre de forma mais rápida é a África. Nos países mais ricos, a supremacia numérica dos moradores das cidades é um fato consolidado desde os anos 50. Nas últimas décadas, guerras e secas ajudaram a empurrar as pessoas para as cidades africanas. Lagos, na Nigéria, é a metrópole de mais rápido crescimento do mundo e também uma das mais faveladas. De acordo com a previsão da ONU, um terço dos deslocamentos populacionais dos próximos trinta anos deve ocorrer na Índia e na China, os países mais populosos do mundo. Metade dos futuros migrantes vai se alojar em cidades médias, com até 500.000 habitantes. Elas têm uma oportunidade rara: a de não repetir os erros das atuais megalópoles.
De modo geral, há desafios comuns às grandes concentrações urbanas. Um deles é o trânsito, que pode definir a qualidade de vida de uma cidade. São Paulo, nesse sentido, é um dos piores lugares para morar. Com apenas 0,01% do território brasileiro, concentra 12% de todos os veículos existentes no país. A quantidade não é o único problema. Boa parte dos paulistanos depende de veículos particulares para ir ao trabalho ou levar os filhos à escola. A solução é evidente: um bom sistema de transporte público. Mas isso pode não ser suficiente, porque as pessoas preferem o carro. Uma pesquisa com americanos mostrou que 83% dos entrevistados preferiam morar distante e depender do carro a viver em uma região central e usar o transporte público. Nesses casos há recursos mais radicais. Cingapura foi a primeira a cobrar pedágio dos veículos que trafegam em sua área central. Londres e Oslo copiaram a medida. A prefeitura de Nova York tentou seguir o exemplo, mas na semana passada o projeto foi rejeitado pelos vereadores. "As cidades precisam fazer os motoristas pagar pelos custos que seus carros impõem à sociedade", diz o engenheiro brasileiro Paulo Custódio, consultor de transporte público e professor da Universidade de Shandong, na China. Há problemas que são mais graves em um lugar que nos outros. A poluição do ar em Pequim, por exemplo, é tão intensa que ameaça o desempenho dos atletas na Olimpíada deste ano.
Dificuldades próprias da pobreza, como as favelas, são mais agudas no Terceiro Mundo. "Na maioria dos países emergentes, o crescimento das cidades acontece sem nenhum planejamento, criando enormes espaços de pobreza", diz o brasileiro Ivo Imparato, especialista em urbanismo do Banco Mundial, em Washington. Existe solução para as áreas faveladas? O brasileiro Jonas Rabinovitch, conselheiro de governança da ONU que tem no currículo a reconstrução de Cabul, a capital do Afeganistão, destruída pela guerra civil, diz que a melhor estratégia não é combater ou tentar erradicar as favelas, e, sim, urbanizá-las. O subsídio do governo também é necessário porque a população mais pobre tem muita dificuldade para obter linhas de crédito. "Não se trata de paternalismo, pois boa parte dos moradores de favela tem condições de pagar um aluguel e o faz", disse Rabinovitch a VEJA. Nos últimos oito anos, a prefeitura de Medellín, na Colômbia, empreendeu um dos mais conhecidos programas de urbanização de favelas. Foram construídas escolas, postos de saúde, bibliotecas e alternativas de lazer ao botequim. E também instalados dois teleféricos que conectam o morro com o metrô.
Nem todas as cidades podem encontrar seu lugar no primeiro time da globalização. Algumas são pobres demais para isso ou carecem de indústrias ou dos serviços necessários. Outras ainda precisam resolver problemas elementares, como falta de água, luz e esgoto. O que está claro no planeta urbano é que nenhuma metrópole está condenada, por pior que pareça sua situação. Ao contrário, o fenômeno mais surpreendente é o das cidades que se reinventam. O melhor exemplo é Bilbao, antigo pólo industrial decadente na Espanha. O arquiteto americano Frank Gehry projetou um prédio extravagante para o museu Guggenheim, que serviu para transformar a imagem da cidade em uma metrópole ultramoderna. Animada com o exemplo, Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, está construindo suas próprias filiais do Guggenheim e do Louvre. Dubai, o emirado ao lado, foi além: a cidade foi reconstruída com praias e ilhas artificiais, canais que lembram os de Veneza e, para servir de cartão-postal, um magnífico hotel dentro do mar, cujo formato lembra a vela de uma embarcação do Golfo Pérsico. O homem quer tanto viver em cidades que as constrói até no deserto.
Com reportagem de Alexandre Salvador e Duda Teixeira