Em 1994, a Itália começou uma reforma política. Uma das metas era a mesma que temos aqui: reduzir o número de partidos. A fragmentação tornava — segundo se dizia lá e se diz aqui — difícil de governar. Nos últimos 14 anos, eles conseguiram montar um sistema bipartidário. O resultado não poderia ser mais assustador: o terceiro mandato para Silvio Berlusconi; e a presença da extrema-direita, que dobrou.
O discurso inicial de Berlusconi arrepia nestes tempos de aumento da xenofobia.
Ele se referiu aos imigrantes como o “exército do mal”. De quebra, criticou o gabinete espanhol, montado por Zapatero, por sua maioria feminina, dizendo que o presidente “terá certa dificuldade para dirigi-las”.
Isso entre outras pérolas de seu estilo. O currículo de frases indigestas, episódios nebulosos na campanha e nos seus períodos de governo daria uma coluna inteira.
Poderia fazer também com que você, leitor, considerasse que reformas políticas são perigosas. Elas podem trazer avanços, sim, mas não são a panacéia que se imagina no Brasil. Uma reforma política tem que partir de dois pontos: informação sobre o que se passou em outros países; conhecimento da natureza política do Brasil.
A extrema-direita teve um crescimento impressionante; com isso, garantiu ao partido de Berlusconi a maioria das cadeiras no Parlamento.
Ela participa da coalizão no poder e deve, assim, abocanhar alguns ministérios importantes. Seu líder, Umberto Bossi, pode ficar com o cargo que cuidará das reformas. Na ponta oposta, a outra grande surpresa desta eleição foi que, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o partido comunista ficou fora do Parlamento.
— O que aconteceu na Itália foi uma revolução eleitoral — afirmou o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EPGE/FGV.
A revolução seria a construção de um sistema de representação sem a tradicional fragmentação. O sistema italiano, assim como o brasileiro, sempre foi muito fragmentado, ou seja, cheio de partidinhos.
— Foram necessários 14 anos, isto é, desde o início do processo de reformas eleitorais em 1994, para que se alcançasse o resultado desejado, qual seja, a redução substancial da fragmentação.
Que isso nos sirva de lição — comentou o professor.
O modelo de eleição italiano é confuso até mesmo para os cientistas políticos.
Em linhas gerais, lá o sistema é o seguinte: a coligação vencedora, mesmo sem a maioria, leva pelo menos 60% das cadeiras do Parlamento. Coligações com menos de 2% dos votos não levam nada; assim como partidos independentes com menos de 3%. O resultado disso foi que, dos 30 partidos que concorreram, conseguiram cadeiras apenas sete, sendo que 93% delas estão com a coligação de Berlusconi e com a opositora, do candidato derrotado Walter Veltroni. Juntas, elas tiveram pouco mais de 80% dos votos. O objetivo era facilitar a formação de maiorias estáveis e criar cláusulas de barreiras aos nanicos.
— O sistema deixou de ser multipartidário para se tornar bipolar. Diminuiu o número de partidos efetivos.
Mesmo olhando os partidos e não as coligações, os dois principais partidos juntos passaram a concentrar mais cadeiras. Agora existe uma centro-esquerda e uma centro-direita no Parlamento — explicou Octavio Amorim.
A decisão de Veltroni de fazer uma coligação com apenas dois partidos, segundo o cientista político, fez toda a diferença. Para comparar, nas últimas eleições, o vencedor, Romano Prodi, participava de uma coligação com 13 partidos. Ela era tão frágil que a retirada de um nanico da coligação acabou inviabilizando e derrubando seu governo.
A saída dos partidos comunistas do Parlamento foi uma das mais demoradas da Europa Ocidental. A Itália sempre teve uma tradição comunista muito forte.
Um artigo do jornal “El País” desta semana atribui essa derrota da esquerda italiana a uma “vitória do voto útil”, pelo medo de dar a vitória a Berlusconi, ou fruto do desgaste do governo de Prodi. A democracia cristã, também tradicional no país católico, foi outra que perdeu espaço.
Mesmo tudo isso explicado, fica difícil entender, afinal, o que em Berlusconi agrada aos italianos. Para alguns estudiosos, Berlusconi foi capaz de captar a psique italiana deste momento.
E eles estão, sobretudo, assustados com a chance de ter crescimento de 0% este ano e com o aumento da imigração. Dessa forma, várias promessas não cumpridas em outras ocasiões — como as de que os italianos vão enriquecer, mesmo sem explicar como — continuam capturando eleitores.
Um editorial do jornal “Le Monde” conclui: “A boa notícia desta eleição é que, apesar de um sistema eleitoral complicado, aparecem duas grandes forças a esquerda e a direita, antevendo o bipartidarismo. A má notícia é que Silvio Berlusconi tem, com essa eleição, maioria suficiente para governar por cinco anos. A julgar por suas performances anteriores, é para ficar preocupado.” Não se pode transpor a política de um país para outro, e a Itália sempre foi bem singular. Além de ser parlamentarista e não presidencialista, como é o Brasil.
Mesmo assim, o que aconteceu lá deveria nos ajudar a derrubar certos mitos.
Nem todo partido pequeno é ruim. O PSOL tem uma atuação fundamental no Parlamento; é uma minoria radical e ideológica.
Faz bem ao sistema. Um exemplo: sua atuação no caso Renan Calheiros. Deve-se criar barreira aos nanicos de aluguel. O pior defeito das propostas que surgem no Brasil é que elas prometem o milagre do sistema político perfeito. A Itália de Berlusconi III, com suas inclinações fascistas, deve nos servir de alerta.
Entrevista:O Estado inteligente
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