RABAT, Marrocos. Regis Debray, um dos intelectuais franceses mais influentes e atuantes da atualidade, acha que há urgência em se conseguir um entendimento entre as civilizações, mas é cético sobre a possibilidade de essa aproximação se realizar. Ele relaciona três razões para a urgência: 1) Não se pode falar de democracia sem falar em demografia. Ele cita a questão atual do preço dos alimentos e sua escassez, e a proteção do meio-ambiente, para dizer, dramaticamente, que estamos produzindo “um suicídio coletivo”. 2) As insurreições religiosas e de identidades. 3) A fragmentação da globalização, que provoca a “balcanização política e cultural”, conseqüência do que classifica de um “progresso retrógrado”.
O intelectual Regis Debray, envolvido no diálogo das civilizações, que fez a principal intervenção do seminário da Academia da Latinidade, está longe do guerrilheiro que ficou famoso mundialmente por ter dado a base teórica para a guerrilha de Che Guevara na América Latina com o livro “A revolução na revolução”.
Guerrilha da qual participou in loco, e pela qual foi preso na Bolívia. Embora continue marxista, ele se diz mais próximo hoje do Oriente Médio do que do Ocidente, e a América Latina é um assunto que ele já classificou de “traumático” para si.
Também pudera: preso e torturado na Bolívia depois do fracasso da guerrilha em 1967, foi condenado a 30 anos de prisão. Foi libertado em 1970, depois de uma campanha internacional que contou com a intervenção tanto de De Gaulle quanto de Sartre.
Ele considera que os governos de esquerda que hoje dominam o cenário político da América Latina são conseqüências tardias dos movimentos de que participou nos anos 60 do século passado.
E diz que é preciso desejar que se opere uma mudança política em Cuba, embora tenham que ser mantidas as conquistas sociais e educacionais.
Hoje ele se dedica à midiologia, uma disciplina que estuda os mecanismos de transmissão. Segundo uma definição sua, é normal que um “intelectual revolucionário”, que quer produzir mudanças através de palavras, questione-se, a partir de certo momento, sobre a maneira de as palavras agirem.
Debray também se dedica ao estudo das religiões, e foi o primeiro presidente do Instituto Europeu de Ciência das Religiões. Como membro da Comissão Stasi, ajudou na criação de uma legislação sobre a secularização e os símbolos religiosos nas escolas. Para ele, não haverá diálogo enquanto um dos interlocutores, no caso o Ocidente, “for arrogante e se considerar dono da verdade”.
Lembrando que as culturas fortes foram fundadas sobre religiões, ele cita o Ocidente católico; o judaísmo; o islamismo; e o caso recente do Tibete para colocar essa questão religiosa como um dos pontos de dificuldade da convergência .
“Identidade nasce sempre da altercação com o outro. Cultura é confrontação, que forja a identidade.
Diálogo é convite a não permanecer imutável, tem o senso da transversal”, comenta Debray, para constatar que o no mundo atual, “quanto mais modernidade, mais arcaísmo”, dando como exemplo o surgimento da Nação étnica, em lugar da Nação cívica.
Com um toque de humor, ele lembra que o surgimento do automóvel fez surgir a tese de que o homem ficaria com seus membros inferiores atrofiados por deixar de andar.
“E hoje, o que acontece? Os homens correm, fanaticamente ” .
Regis Debray considera que a latinidade “é uma diferença importante” no mundo moderno, dominado pelas culturas européias e anglo-saxônicas. Mas não deixou de, ironicamente, lembrar que o conceito de “latinidade” foi inventado por Napoleão III para conquistar o México.
De fato, a definição de América Latina nasceu na França, na segunda metade do século XIX, pouco antes da expedição militar francesa ao México, e serviu de base para justificar uma proximidade entre os conquistadores e o conquistado. Como “midiólogo”, Debray propôs, então, o uso do termo “latinitude”, que tem o mesmo sentido da “negritude”, ou seja, uma atitude, um estado de espírito.
O filósofo brasileiro Candido Mendes, secretário-geral da Academia da Latinidade, respondeu de imediato que aceitava o termo “latinitude”, mas ressaltou que o conceito de “latinidade” embutia algumas características sociais que são fundamentais para estimular o entendimento.
Entre elas, Candido Mendes citou a “coexistência efetiva” dos povos latinos, diferentemente do que ocorre no que chamou de “Ocidente duro”, e a “organicidade do social”, o espírito de coletividade que se contrapõe à “individualidade extrema” de outras sociedades.
Debray também gostou da proposta de “dialética do diálogo” que dá o título da conferência, pois, para ele, a palavra “diálogo” perdeu o seu real significado.
“Mais que ‘dialogar’, é preciso ‘dialetizar’”, ressaltou.
O diálogo, que define como “uma viagem de cultura para se chegar a si mesmo através do outro”, segundo ele, foi banalizado “por esses encontros diplomáticos que fazem tributo à palavra ineficaz”.
Devemos fazer a antropologia cultural em vez da ideologia política, diz Debray, para quem “o fator cultural é o valor do século”.
Ele acha que “vivemos um momento estranho nas relações internacionais, quando os estados dominantes não negociam com os divergentes”. “Negociar é dar e receber”, comenta.
(Continua amanhã)
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