Preparei este artigo antes de viajar para os Estados Unidos, onde participo, hoje, de uma série de discussões na Universidade de Brown, em comemoração dos 40 anos da primeira edição do livro que fiz com Enzo Faletto sobre Dependência e Desenvolvimento na América Latina. É a minha despedida de Brown, depois de haver sido professor at large (título que requereu curta permanência docente anual) durante cinco anos.
Confesso que não gosto de escrever com tanta antecipação. A natural falta de interesse do leitor de jornal por notícias e mesmo por análises não atualizadas requer temas momentâneos. Temas que, ultimamente, têm sido francamente desanimadores para quem acredita que a política não se limita a uma luta mesquinha pela conquista e preservação do poder. Causa-me repulsa a falta de compromisso com a verdade dos fatos, a desonestidade intelectual e, principalmente, o tratamento cínico dispensado a indícios graves de improbidade na administração pública e a benevolência com que são tratados infratores amigos ou aliados. Como ainda agora no episódio dos cartões corporativos. A insensibilidade do presidente e de seu governo é tanta que pouco se lhes dá a opinião pública. Com a popularidade inflada pelos bons ventos da economia, joga-se irresponsavelmente com a idéia de que a preocupação com a moralidade pública e o respeito à lei é coisa de elite branca que tem tempo para ler jornal.
Quanta diferença com o que se vê hoje nos Estados Unidos. Quem não leu deve ler a íntegra do discurso de Barak Obama A more perfect Union. Nele Obama reconecta a luta política aos melhores valores de uma República que foi fundada com bases em ideais, entre eles o da igualdade. Um ideal sempre imperfeitamente realizado, mas que constitui até hoje o móvel das melhores e mais nobres lutas políticas do povo americano. Obama não se apropria do ideal para utilizá-lo como arma eleitoral e dividir o país. Mostra, assim, a grandeza de sua liderança.
Reproduzo um trecho representativo do sentido de seu discurso. Nele reconhece e critica a agressividade do pastor Jeremiah Wright nos sermões sobre raça proferidos na Igreja da Trindade. Repudia, por outro lado, a crítica que apenas sataniza o pastor e explica: "O erro profundo dos sermões do reverendo Wright não é que ele tenha falado sobre raça em nossa sociedade. É que falou como se nossa sociedade fosse estática, como se nenhum progresso houvesse existido, como se ela ainda estivesse ligada irreversivelmente a um passado trágico. Isso numa nação que tornou possível para um dos membros da congregação disputar o cargo mais elevado de sua terra e de construir uma coalizão entre brancos e negros, latinos e asiáticos, ricos e pobres, jovens e velhos. Mas o que nós sabemos, o que nós vimos, é que a América pode mudar. Este é o verdadeiro espírito desta nação. O que nós já conseguimos nos dá esperança - a audácia da esperança - para fazer o que nós precisamos e devemos fazer amanhã."
Que diferença! Seria demais esperar que Lula, que também é símbolo de uma sociedade dinâmica em que as forças da mobilidade social contam mais do que a origem, percebesse que o País, para avançar, precisa realizar o muito imperfeitamente realizado ideal da igualdade perante a lei e que a moralidade pública é condição da igualdade republicana, e não preocupação de privilegiados? Não é isso que se deveria esperar do chefe da Nação? O que se vê, porém, é um presidente que não hesita em reviver a velha cantilena dos "dois Brasis", da elite branca e dos oprimidos, dos maus e dos bons, e não raro justificar as práticas políticas mais atrasadas. Isso num país que o colocou no topo da vida pública e que se caracteriza por ter uma elite composta pelos "brancos da terra", tisnados com orgulho pelos mais variados sangues, do indígena ao europeu, do negro ao asiático.
Exagero da minha parte? Ou a cantilena dos "dois Brasis" não foi o mote do discurso que Lula fez recentemente em Pernambuco? Para afagar Severino Cavalcanti, chamou-o de vítima do preconceito das elites de São Paulo e do Paraná, que teriam urdido uma trama para seu afastamento da vida pública. Teoria conspiratória risível, se dita por uma pessoa comum. Inaceitável, porém, vindo do presidente da República. Será a prévia do que virá pela frente na campanha eleitoral de 2010?
Que perda de oportunidade histórica! Por que não pensar em Mandela, que saiu de 28 anos de cadeia e falou da necessidade de reconciliação entre negros e brancos na terra do apartheid? Sem negar e repudiar, é claro, a injustiça do racismo. E não se diga que os antecedentes de grandeza só vêm do exterior. Basta lembrar de José Bonifácio, que desde o início do século 19 mostrava que o Brasil, como nação, teria de fundamentar-se na diversidade das raças e no reconhecimento de que os valores da democracia e do Iluminismo não se poderiam circunscrever, como pensava Jefferson, a uma elite restrita, formada por brancos e ricos. Ao contrário, afirmava o Patriarca, se déssemos educação aos negros e aos indígenas, portadores de Razão como todo ser humano, eles se tornariam cidadãos.
Por que, ao invés de passar a mão na cabeça de quanto aloprado exista ao seu lado, de ver amigos em quem se deixa corromper e inimigos em quem honestamente dele diverge, nosso presidente, com todas as credenciais que tem de homem que nasceu no meio do povo mais pobre e venceu, não une os brasileiros em torno do ideal fundador de toda grande República?
Por que, ao invés de congregar e definir valores comuns, se perde em picuinhas e se entusiasma tanto em inaugurar pedras fundamentais de obras que não se constroem? Raramente o País teve conjuntura econômica e mesmo social tão favorável para dar um salto grandioso na construção de uma Nação decente. Não obstante, a oportunidade se está perdendo pela falta de visão de quem lidera.
Entrevista:O Estado inteligente
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