Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 05, 2008

CRISE- Perguntas para Jérôme Cazes, presidente da Coface

O avalista de 500 bilhões de euros


Marcio Aith

A crise financeira que abala os bancos americanos já é uma das piores, se não a pior, desde o crash de 1929. Mas as grandes indústrias e prestadoras de serviços não financeiros aprenderam com os erros do passado e, precavidas, acumularam reservas invejáveis nos últimos sete anos. Por essa razão, a crise atual será menos desastrosa para a economia mundial do que a de 2001, quando grandes grupos industriais fraudaram balanços e trouxeram descrédito ao mercado de ações. Quem diz isso é Jérôme Cazes, observador privilegiado do desempenho da economia não financeira – pejorativamente chamada de "economia real". Por presidir a companhia francesa Coface, uma das maiores seguradoras de créditos comerciais (empréstimos e pagamentos feitos entre empresas) do mundo, Cazes monitora, com base num banco de dados, a saúde financeira de 55 milhões de indústrias e prestadoras de serviços ao redor do planeta. Da exatidão desses números depende a sobrevivência da própria companhia que preside – uma potência financeira que fatura 1,5 bilhão de euros por ano e atende a cerca de 45% das 500 maiores empresas globais. Se todas as operações de crédito seguradas pela Coface deixassem de ser pagas, ela teria de honrar, em prêmios, 500 bilhões de euros, a soma de toda a produção de um país como a Argentina pelo prazo de três anos. Com base nesse banco de dados, a companhia também define anualmente uma versão "privada" de risco-país – a probabilidade média de calote das empresas de cada nação. Nessa medição, a Coface diferencia-se das agências tradicionais de risco – como a Moody’s, a Fitch e a Standard & Poor’s – por um fato singular: por ser uma seguradora, só classifica riscos de crédito que ela própria aceita correr. Cazes falou a VEJA por telefone, de Paris.

Qual é o potencial de estrago da atual crise? As empresas mais fracas vão submergir, o que é normal. Mas as grandes aprenderam com os erros do passado e, precavidas, acumularam uma poupança invejável nos últimos sete anos. Por essa razão acredito que a atual crise econômica será menos desastrosa, para o mundo, do que a das fraudes corporativas de 2001. Há outro fator, igualmente auspicioso: dependendo do país, o financiamento do setor privado depende mais de empréstimos entre empresas do que de empréstimos concedidos por bancos. De uma maneira geral, pode-se dizer que os dois tipos de crédito se dividem igualmente nos balanços de grandes empresas. Portanto, ainda que o crédito bancário encareça em razão da crise, ele não vai secar.

Qual é a diferença entre a atual crise e as anteriores? Nos últimos quarenta anos, tivemos, em média, oito bons anos para dois anos ruins na economia mundial. Foram quatro fortes turbulências desde a década de 70. Todas elas nasceram no seio da economia real e transbordaram para o mercado financeiro. Desta vez ocorre o inverso. Essa é a primeira crise séria genuinamente oriunda das finanças, produto de mudanças infelizes nas regras do jogo. Nas últimas duas décadas, os órgãos reguladores permitiram aos bancos assumir riscos enormes. Depois, deixaram que empacotassem esse risco em produtos financeiros excêntricos que receberam a aprovação das agências de classificação de risco. Esses produtos acabaram nas mãos de pequenos investidores que não sabiam o risco que estavam assumindo.

Qual foi o papel das agências de classificação de risco nessa crise? Elas erraram feio. Avaliaram positivamente produtos financeiros complicadíssimos que nem conheciam. Criaram, com isso, uma estranha dicotomia: foram extremamente rígidas com relação a companhias tradicionais e frouxas com relação a excentricidades financeiras. Apenas cinco empresas americanas possuem a nota AAA, considerada a melhor classificação de risco pelo critério das agências tradicionais. São elas: Automatic Data Processing, Exxon, GE, Johnson & Johnson e Pfizer. Já o número de instrumentos financeiros com a mesma classificação chegava a 5 000 antes da crise.

A maior fraude financeira de que se tem notícia, no Société Générale, ocorreu em seu país, a França, e não nos Estados Unidos. Não se trata de uma disfunção generalizada? Se os Estados Unidos têm pouca regulação, a França tem regras em excesso. Existe um dilema eterno entre a regulação excessiva e uma regulação frágil. Quando se tenta controlar demais o mercado financeiro, as fraudes são cometidas fora dos balanços, para escapar aos controles – em parte, foi o que ocorreu no Société. Quando há pouca regulação, os problemas são mais escancarados. Os europeus costumam dizer que importaram uma crise financeira americana. Embora um certo antiamericanismo esteja embutido nessa crítica, ela é parcialmente correta: os Estados Unidos exportaram, somente em 2006, 100 bilhões de dólares em instrumentos financeiros cada vez mais elaborados. Esses instrumentos transformaram-se no maior produto de exportação americano. É óbvio que a regulação americana é frágil e que essa foi uma das maiores causas da crise atual. Os Estados Unidos enfrentam uma crise de natureza regulatória. Os órgãos de fiscalização permitiram a concessão de crédito para tomadores sem capacidade de pagamento e índices absurdos de alavancagem.

As empresas de quais países serão mais atingidas? Em primeiro lugar, as americanas. Lá, a inadimplência já se alastra entre as empresas médias e pequenas. Por isso, reduzimos a classificação de risco privado dos Estados Unidos de A1, a melhor possível, para A2. O país deve enfrentar uma recessão no primeiro semestre, com uma leve recuperação no segundo. O Brasil mantém-se no primeiro degrau das faixas de nível de investimento, à frente da Rússia, na mesma posição da Colômbia e abaixo de Chile, Coréia do Sul, China, Índia, México e Hong Kong. A demanda doméstica brasileira continuará sendo o motor do crescimento do país.


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