Economia
A lei de olhos abertos
Pode funcionar a tentativa dos americanos
de disciplinar os mercados financeiros
Giuliano Guandalini
J. Scott Applewhite/AP |
O secretário americano do Tesouro, Henry Paulson: à procura da luz no fim do túnel escuro da crise financeira |
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"A luz do sol é o melhor dos desinfetantes", afirmou, quase um século atrás, o juiz americano Louis Brandeis (1856-1941). A frase se referia à necessidade de transparência no sistema financeiro. Segundo o juiz, os banqueiros invariavelmente se safavam incólumes das crises financeiras, enquanto o ônus recaía sobre a cabeça dos poupadores da classe média. As idéias de Brandeis influenciaram a criação de leis que tiveram como objetivo tornar o funcionamento dos mercados mais justo e eficiente, restringindo o poder dos grandes financistas e protegendo poupadores. As reformas mais significativas foram feitas em 1913, após a corrida aos bancos de 1907, e em 1933, depois do crash de 1929 (veja o quadro). Com o tempo, no entanto, muitas das regras caíram em desuso. Entre outros fatores, porque engessavam em demasia a atividade financeira e não impediam as fraudes, que vicejaram ao largo dos reguladores. Agora que os Estados Unidos se defrontam com mais uma crise séria, fruto em larga escala da falta de fiscalização sobre instrumentos financeiros extremamente especulativos, os americanos se preparam para passar pelo ajuste regulatório mais profundo em sete décadas. E se perguntam se leis melhores, por mais bem-intencionadas que sejam, teriam impedido os excessos que provocaram a atual crise.
O ajuste foi proposto na semana passada pelo secretário americano do Tesouro, Henry Paulson. Se aprovado pelo Congresso, o plano, que começou a ser elaborado ainda antes da atual crise financeira, será o mais abrangente desde a Grande Depressão. Agora ganhou urgência. Pela proposta, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) ganhará poderes para fiscalizar de perto todos os fundos de investimento, como os especulativos hedge funds. Essas aplicações, lastreadas em ativos nem sempre palpáveis, estiveram entre os principais dissipadores de investimentos heterodoxos. As corretoras e os bancos de investimentos também terão seus negócios acompanhados mais atentamente. As reformas representarão uma bem-vinda faxina no arcabouço legal que rege o mercado americano. No entanto, ainda que a reformulação proposta pelo secretário Paulson traga pontos positivos, não se pode imaginar que o sistema será um dia imune a choques. Como afirmou a VEJA o economista Edwin Truman, ex-diretor de finanças internacionais do Fed: "Existem, sim, falhas no sistema regulatório, mas não há nenhuma evidência de que as reformas, se já estivessem em prática, teriam evitado as dificuldades financeiras por que passa a economia americana". O projeto de Paulson foi originalmente concebido para simplificar o sistema financeiro e torná-lo mais competitivo. Os Estados Unidos possuem hoje sete órgãos federais independentes para fiscalizar o sistema financeiro. Cada um acompanha negócios específicos, e nenhum deles consegue observar o todo conjuntamente. Sem falar nas dezenas de normas estaduais. Toda essa burocracia fez com que o mercado americano perdesse terreno para outras praças, como Londres. Desde 1997, a Inglaterra possui apenas um único órgão central destinado a vigiar todo o sistema financeiro, o Financial Services Authority (FSA). Emitir uma ação no mercado inglês, por exemplo, é mais barato e ágil do que nos Estados Unidos.
As dificuldades americanas só ficarão para trás quando os bancos limparem de seus balanços a montanha de créditos podres acumulada por eles. As instituições americanas e européias já anotaram perdas superiores a 230 bilhões de dólares em decorrência de empréstimos e investimentos que viraram pó. Contribui para isso o tombo no preço dos imóveis, que baixou 10% desde o começo da crise. Essa desvalorização significou uma perda de 2 trilhões de dólares para o patrimônio pessoal dos americanos. São dados como esses que fizeram o presidente do Fed, Ben Bernanke, afirmar, com um cuidadoso eufemismo, que o país poderá sofrer uma recessão. "É provável que a economia não cresça no primeiro semestre, ou até mesmo passe por uma ligeira contração", disse Bernanke na quarta-feira passada (dia 2), durante audiência no Congresso. No cenário mais otimista, a locomotiva americana voltaria aos trilhos a partir de meados de 2008. Flexível e inovadora como é, a economia americana cedo ou tarde recuperará seu vigor. Até lá, terá de depurar seus excessos com um saudável banho de sol. Será o melhor desinfetante. Até que venha um novo abalo.