A capitulação que desonra
Fardado de guerreiro pronto para o combate, um revólver na mão e o chapéu tricorne na cabeça, o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, escoltado por 200 integrantes da Guarda Civil, invadiu o Parlamento espanhol em 23 de fevereiro de 1981. Apontou a arma para a cabeça do presidente da instituição e ordenou que os deputados se agachassem. "Todo el mundo ao suelo!", berrou. Só três ignoraram o grito do golpista. Só três preferiram a morte provável à capitulação desonrosa.
Um deles foi Santiago Carrillo, secretário-geral do Partido Comunista. Por que decidira continuar sentado? "Estou velho demais para virar covarde", explicou. E se Tejero Molina cumprisse a ameaça de atirar nos insubordinados? "É preciso saber morrer", ensinou Santiago Carrillo. Aos 66 anos, ele acabara de mostrar que já aprendera a envelhecer com dignidade.
Também saberia morrer. Entre o dia do golpe e a hora da partida, penitenciou-se por erros do passado, ajudou a reunificar a nação estilhaçada pela guerra civil, esforçou-se para ressuscitar a democracia. Conheceu a prisão, o exílio, a clandestinidade e a derrota. Nunca pensou em ser indenizado pelo governo.
Não existe na Espanha nada parecido com o Programa Bolsa Ditadura. Como em todos os países que prezam a decência, a ética, a justiça e a vergonha na cara, também ali são concedidas indenizações a cidadãos prejudicados pelo Estado que os mantinha sob custódia. O rei Juan Carlos teria de vender até o trono se, em vez de incontáveis ex-combatentes que acham vergonhoso pedir dinheiro pelo que fizeram, a Espanha abrigasse milhares de guerreiros de araque, que só se mobilizam para a batalha contra os cofres públicos.
Caso fosse brasileiro, bastaria a Santiago Carrillo identificar-se no guichê do organismo no qual sobra dinheiro da Viúva e falta sensatez. Voltaria para casa com a mais vistosa das medalhas concedidas a um Herói da Resistência e uma bolsa-ditadura maior que a soma abocanhada por toda a turma de jornalistas que fez bonito na festa de formatura. O ministro Tarso Genro, atual patrocinador da gastança, fez questão de ouvir ao vivo o discurso incendiário do orador Ziraldo Alves Pinto.
Entre indenizações corretíssimas, doações inexplicáveis e mensalidades fixadas por regras misteriosas, a União desembolsou, dos anos 90 para cá, pelo menos R$ 2,4 bilhões. O bloco dos ministros perdulários é liderado por Márcio Thomaz Bastos (R$ 1,9 bilhão ao longo da gestão). Tarso Genro luta bravamente pela liderança. Só nos três primeiros meses deste ano foram torrados R$ 122,3 milhões. Dos mais de 60 mil casos apreciados pela comissão desde 2001, foram analisados 37.200. Faltam 23.100. Tarso tem boas chances de chegar lá.
No final do governo Lula, calcula-se que o Brasil terá distribuído entre os beneficiários pelo Programa Bolsa Ditadura cerca de R$ 4 bilhões. É uma quantia apreciável: para indenizar as vítimas do Holocausto promovido pelos nazistas, a Alemanha entregou R$ 5 bilhões. Na lista dos premiados não figura nenhum participante da guerrilha do Araguaia. Em contrapartida, inclui dois adultos indenizados por sofrimentos que os alcançaram no ventre da mãe. Só no Brasil a ditadura foi combatida até por fetos.
Era revolução ou investimento?, perguntou Millôr Fernandes. É isso.
Yolhesman Crisbelles
A taça da semana vai para o ministro Tarso Genro, pela explicação costurada para explicar por que a Polícia Federal investigará só uma parte da história do dossiê montado na Casa Civil para deixar mal no retrato Fernando Henrique e Ruth Cardoso:
O que será apurado é vazamento de documento, que traduz informações reservadas a respeito de outras administrações. Isso é um fato determinado. Dossiê não é fato determinado. Dossiê é conceito. A Polícia Federal e a sindicância não investigam conceito. Se é dossiê ou não, é um juízo político.
Tarso deveria contratar um intérprete que traduza para o português o dialeto que criou.
Cabôco Perguntadô
Confuso com a legislação que trata das reservas indígenas (que os generais em serviço na Amazônia preferem chamar de "terras indígenas"), o Cabôco anda atormentado por uma penca de perguntas à caça de respostas claras. Quem manda de fato nessas imensidões? O governo federal ou os caciques locais? Os direitos das tribos se limitam à superfície ou se estendem ao subsolo? A exploração das riquezas minerais é prerrogativa do Estado ou passou ao controle dos que foram donos do Brasil inteiro antes da chegada das caravelas? O Exército continuará responsável pela vigilância das fronteiras que cruzam essas vastidões? As áreas demarcadas, enfim, continuam a fazer parte do mapa oficial do Brasil?
Nós elegemos. Eles enriquecem
Em agosto de 1982, o repórter acabara de entrar na sala de Gastão Vidigal quando ouviu a informação. "O Jânio Quadros acabou de sair daqui", disse o dono do Banco Mercantil. O que queria o ex-presidente, então em campanha para voltar ao governo de São Paulo? "Dinheiro, claro", sorriu o banqueiro. "É assim desde a primeira candidatura". E fora assim novamente: Jânio embolsara um cheque de bom tamanho. "Eleição é coisa complicada, o Jânio pode até ganhar", observou. "E sempre gostei dele". Por quê?, quis saber o jornalista. "Porque ele é eleito por eles e governa para nós", resumiu. Eles. Soa bem melhor que povão.
Qualquer semelhança não é coincidência. Tudo a ver.
A espécie ainda não foi extinta
A História adverte: só existe estudante contra; estudante a favor é uma figura com defeito de fabricação que faz mal ao país e enfraquece a musculatura do organismo democrático. A transformação das diretorias de entidades como a UNE em viveiros de pelegos reforçou a suspeita de que a espécie do estudante contra fora erradicada do Brasil. Engano, informou nesta semana a moçada da UnB. Estudantes contra a permanência de Timothy Mulholland no comando da universidade decidiram despejá-lo do lugar onde se homiziava e invadiram o prédio da reitoria. Foi uma boa idéia. A queda do magnífico delinqüente foi uma boa notícia. O sucesso do movimento foi uma péssima notícia para os pelegos.
Entrevista:O Estado inteligente
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