Um problema crítico da democracia é verificar quando e em que circunstâncias a desigualdade vira diversidade
Isso não é crônica. É um pedido de desculpas ao meu querido
amigo e ex-mentor, Richard Moneygrand. Na semana passada fiz o
imperdoável: misturei minha reação à derrota do meu candidato com um
e-mail do professor Moneygrand falando de um doloroso divórcio.
Recebi três mensagens de Moneygrand. Na primeira eu era chamado de “boquirroto” e “indiscreto”. Na outra, ele me perdoava, pois, como todo mundo que escreve, Dick é um fascinado com as ironias da vida. Nesta mensagem ele diz que cronistas, comentaristas, escritores e poetas vivem da rapina e da traição. Trair, roubar ideias e mentir era o nosso fado. Se nós tentamos trair a morte, como não trairmos nós mesmos e os nossos melhores amigos?
Na terceira mensagem, Richard Moneygrand se encarna como professor e faz um longo comentário sobre o nosso momento pós-eleitoral. Nele, ele teoriza sobre a passagem da desigualdade para a diversidade: da diferença quantitativa e supostamente gradual nas teorias do capitalismo individualista para as oposições irreparáveis como as existentes entre um pássaro e um peixe. Como são mensagens longas, transcrevo o que assumo ser o mais importante — e, por isso, a crônica vai em duas partes.
Em paralelo, Moneygrand fala (mais e melhor do que o que li) da singularidade de nossa crise atual. Ela é única justamente porque, paradoxalmente, elegeu a pessoa e o partido que vão agravá-la. Deste modo, nossa eleição não teve o papel de resolver problemas, como dizem os ingênuos liberais, mas de agravá-lo.
Eis o que diz:
“O Brasil virou pelo avesso. O vosso momento carnaval-eleitoreiro foi satisfatório. O anormal é a crise pós-eleitoral. Hoje, o partido que tem mais problemas é o vencedor, perdido na vitória e nos meandros insondáveis da personalidade da presidenta que não faz o que diz e faz o que não diz. O PSDB derrotado, que dizem não ser um partido mas uma escola de pós-graduação, pode encontrar um caminho. Algo impensável após uma eleição na qual estavam em jogo não apenas projetos de governo e visões de mundo (uma mais para o lado do Estado; outra para o lado da sociedade; uma para a mediação da vida pelo partido como um instrumento de totalização do mundo; outra para uma mediação mais individual, pelo jogo do mercado não mais autorregulado, como dizia Karl Polanyi, mas controlado por agências reguladoras teoricamente extramundanas). Isso para não falar da oposição entre um homem jovem e nascido em palácio; e uma mulher de meia-idade construída carismaticamente, mas feita do barro autoritário e duro das utopias políticas e dos seus substitutos na América Latina: as tecnoburocracias estatizantes.
Os debates tiveram o tom de disputas futebolísticas e a vitória foi com uma margem pequena. Tão curta que não justificou euforia ou arrogância. Aliás, quase ocorreu um empate normal no futebol, mas que levaria os vossos tribunais eleitorais — afinal vocês têm polícias, leis e juízes para todas as esferas da vida — a travar debates intermináveis dentro do quadro jurídico-teológico aprendido em Coimbra pelos vossos ilustres magistrados.
Mas quero ir além disso. A eleição pelo voto individual sempre foi um mecanismo de resolução de diferenças. Um mecanismo que, entre brasileiros, é usado como último recurso. Vocês amam dar opinião, mas detestam votar em aberto, dizendo francamente o que pensam. Faz parte do vosso sistema hierarquizado, que leva a conciliações, favores e inocências culpadas, esconder o voto. Em muitas sociedades tribais, baseadas no parentesco e não na burocracia (ou no Estado), o processo de disputa aberto é inibido, como viram alguns dos seus antigos colegas ingleses, como E. E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes. Ele geralmente resulta numa fissão, porque a diferença tornava-se diversidade; em quando um clã ou uma facção política não chegava a um acordo elas ampliavam suas desigualdades e o "voto" era a divisão ou a explosão do grupo em segmentos que formavam outras aldeias. O processo foi estudado por você no livro “Um mundo dividido”, que eu admirei, justamente porque descrevia o sistema político de uma sociedade tribal. Resumo da ópera: em sistemas sem escrita e voto individual, as diferenças se transformam em diversidade. Aquilo que seria opinião torna-se algo insuperável e o ressentimento vira vingança, ódio e, eventualmente, supremacia étnica.
Dá para entender o que digo? Um problema crítico da democracia é verificar quando e em que circunstâncias a desigualdade vira diversidade. Não é isso que diz o livro “Capital”, de Piketty, o best-seller menos lido do mundo?”
Roberto DaMatta é antropólogo
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Recebi três mensagens de Moneygrand. Na primeira eu era chamado de “boquirroto” e “indiscreto”. Na outra, ele me perdoava, pois, como todo mundo que escreve, Dick é um fascinado com as ironias da vida. Nesta mensagem ele diz que cronistas, comentaristas, escritores e poetas vivem da rapina e da traição. Trair, roubar ideias e mentir era o nosso fado. Se nós tentamos trair a morte, como não trairmos nós mesmos e os nossos melhores amigos?
Na terceira mensagem, Richard Moneygrand se encarna como professor e faz um longo comentário sobre o nosso momento pós-eleitoral. Nele, ele teoriza sobre a passagem da desigualdade para a diversidade: da diferença quantitativa e supostamente gradual nas teorias do capitalismo individualista para as oposições irreparáveis como as existentes entre um pássaro e um peixe. Como são mensagens longas, transcrevo o que assumo ser o mais importante — e, por isso, a crônica vai em duas partes.
Em paralelo, Moneygrand fala (mais e melhor do que o que li) da singularidade de nossa crise atual. Ela é única justamente porque, paradoxalmente, elegeu a pessoa e o partido que vão agravá-la. Deste modo, nossa eleição não teve o papel de resolver problemas, como dizem os ingênuos liberais, mas de agravá-lo.
Eis o que diz:
“O Brasil virou pelo avesso. O vosso momento carnaval-eleitoreiro foi satisfatório. O anormal é a crise pós-eleitoral. Hoje, o partido que tem mais problemas é o vencedor, perdido na vitória e nos meandros insondáveis da personalidade da presidenta que não faz o que diz e faz o que não diz. O PSDB derrotado, que dizem não ser um partido mas uma escola de pós-graduação, pode encontrar um caminho. Algo impensável após uma eleição na qual estavam em jogo não apenas projetos de governo e visões de mundo (uma mais para o lado do Estado; outra para o lado da sociedade; uma para a mediação da vida pelo partido como um instrumento de totalização do mundo; outra para uma mediação mais individual, pelo jogo do mercado não mais autorregulado, como dizia Karl Polanyi, mas controlado por agências reguladoras teoricamente extramundanas). Isso para não falar da oposição entre um homem jovem e nascido em palácio; e uma mulher de meia-idade construída carismaticamente, mas feita do barro autoritário e duro das utopias políticas e dos seus substitutos na América Latina: as tecnoburocracias estatizantes.
Os debates tiveram o tom de disputas futebolísticas e a vitória foi com uma margem pequena. Tão curta que não justificou euforia ou arrogância. Aliás, quase ocorreu um empate normal no futebol, mas que levaria os vossos tribunais eleitorais — afinal vocês têm polícias, leis e juízes para todas as esferas da vida — a travar debates intermináveis dentro do quadro jurídico-teológico aprendido em Coimbra pelos vossos ilustres magistrados.
Mas quero ir além disso. A eleição pelo voto individual sempre foi um mecanismo de resolução de diferenças. Um mecanismo que, entre brasileiros, é usado como último recurso. Vocês amam dar opinião, mas detestam votar em aberto, dizendo francamente o que pensam. Faz parte do vosso sistema hierarquizado, que leva a conciliações, favores e inocências culpadas, esconder o voto. Em muitas sociedades tribais, baseadas no parentesco e não na burocracia (ou no Estado), o processo de disputa aberto é inibido, como viram alguns dos seus antigos colegas ingleses, como E. E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes. Ele geralmente resulta numa fissão, porque a diferença tornava-se diversidade; em quando um clã ou uma facção política não chegava a um acordo elas ampliavam suas desigualdades e o "voto" era a divisão ou a explosão do grupo em segmentos que formavam outras aldeias. O processo foi estudado por você no livro “Um mundo dividido”, que eu admirei, justamente porque descrevia o sistema político de uma sociedade tribal. Resumo da ópera: em sistemas sem escrita e voto individual, as diferenças se transformam em diversidade. Aquilo que seria opinião torna-se algo insuperável e o ressentimento vira vingança, ódio e, eventualmente, supremacia étnica.
Dá para entender o que digo? Um problema crítico da democracia é verificar quando e em que circunstâncias a desigualdade vira diversidade. Não é isso que diz o livro “Capital”, de Piketty, o best-seller menos lido do mundo?”
Roberto DaMatta é antropólogo