O GLOBO
Em política, vocês misturam os meios e os fins. Todo mundo quer o governo, mas para quê? Para serem donos do Brasil ou para realizarem coisas para o Brasil?
Eis o trecho final desta carta abusada de Richard Moneygrand:
O Brasil é uma sociedade excepcionalmente desigual. A hierarquia combate, evita e, quando não vence, neutraliza a igualdade. A herança pouco decifrada da escravidão e da monarquia faz com que muitos jamais percebam o abismo das diferenças no plano social, vendo apenas números que não passam fome, não roubam e não vão para a cadeia. Essa visão distanciada e programática — a par de uma exemplar e vergonhosa ausência de educação para a igualdade — faz com que as diferenças entre o "pobre" e o "rico" sejam amortecidas no plano da economia. Eles ainda são tipos bíblicos, pois "pobreza" e "riqueza" ordenam diferenças e revelam um enorme potencial de diversidade.
Em sistemas onde a igualdade e o individualismo (base da cidadania moderna do cada um por si) são o credo, a pobreza é lida como um defeito ou um descuido de um sistema que deveria promover mais riqueza do que pobreza. As diferenças viram "estratificação social", mas elas não se transformam em castas, embora exista esse risco se não houver a visão do limite para cima e sobretudo para baixo. A concepção de que há um jogo entre iguais é obviamente um logro e foi percebida na obra de Marx e outros. Mas quando pobreza e riqueza se associam forte e indissoluvelmente a outros códigos, como o racial, a desigualdade transforma-se em diversidade. E a estratificação financeira passa de classe a segmento. Pobreza e riqueza se relativizam e não são mais vistas apenas como um dado anômalo do sistema. Nesse sentido, leia Thomas Piketty com olhos sociológicos.
No Brasil, sabemos — como vi na sua pesquisa sobre os pobres na periferia de São Paulo — que o "rico" tem obrigações para com os "pobres". Por seu turno, o pobre não deve se rebelar contra a sua pobreza porque existem ricos que são pobres em beleza e saúde. No Brasil, o dinheiro tem parte com o Diabo. Ele não traz felicidade. O dinheiro compra muito, mas não compra tudo. E com isso entramos na faixa das éticas múltiplas que você — continua Moneygrand — explorou no seu "Carnavais, malandros e heróis". A dos eixos valorativos situados fora da economia e do mercado. Tal multiplicidade relativiza as diferenças, sustenta uma ética de paciência e de interdependências, e é o centro da diversidade a qual é apropriada pelos populismos. Se vota em X você perde o benefício...
O rico é devedor do pobre porque, em muitas sociedades, ficar rico é algo tortuoso. Basta pensar como é vil enriquecer com a escravidão, a prostituição ou o cargo público, principalmente quando se prenuncia a igualdade para simplesmente enriquecer o partido. Eu não tenho dúvida que esse caldo ideológico, vindo de uma burguesia afidalgadada pela escravidão, é o que permite dizer: "Vou governar para todos, mas darei mais atenção aos pobres!". Ora, meu caro DaMatta: isso é equivalente a dizer: a lei vale para todos, mas se você for um magistrado ou um membro do meu partido, vamos dar um jeito. A proposta de cuidar de um grupo já hierarquiza. Quem cuida de uma categoria não cuida do todo. E o todo, numa democracia decente é uma coletividade que não admite a riqueza por meio do cargo público nem a pobreza da indigência!
Quando se tem diferenças fundadas numa só dimensão você tem o eixo imperfeito da igualdade perante a lei. Mas quando você introduz múltiplas éticas distinguindo o "nós" dos "outros", você engendra a diversidade. Então surge o inimputável e o condenado que não fica preso; isso para não falar das vossas vergonhosas prisões de onde bandidos comandam atos de vandalismo. Nos livros de Dickens, um pobre se diferencia de um rico porque ele tem menos dinheiro. Num livro de Jorge Amado eles são diferentes mas são também diversos. O pobre é oprimido mas é o herói-malandro apadrinhado de entidades sobrenaturais. No Brasil o pobre não é apenas um "perdedor" — ele é sempre uma vítima.
Em política, vocês misturam os meios e os fins. Todo mundo quer o "governo", mas para quê? Para serem donos do Brasil ou para realizarem coisas para o Brasil? Para isso, é preciso discutir o que é oposição. O verbo é claro e descobre outro fato desagradável: como discordar, cobrar e ser diferente quando a grande maioria faz parte de um mesmo clube e segue as mesmas normas de polidez e boa educação? Para ser oposição há que se disciplinar para se transformar num diferente. Numa sociedade hierarquizada e interligada por simpatias e antipatias isso não é fácil. A turma do meio (que é o maior partido do Brasil) neutraliza. E assim nada se faz para o povo, exceto quando você imagina ser o próprio povo.
Take care,
Roberto DaMatta é antropólogo