Estadão
Uma curiosa contradição está servindo para provocar sérias dúvidas a respeito da democracia com que o Brasil tanto sonhou. Quando, em São Paulo, tiveram início pelas ruas as manifestações populares de junho do ano passado, voltadas para protestos ou reivindicações de direitos, prevaleceu a impressão inicial de que oxigenavam e fortaleciam o nosso regime.
Realmente, o País havia se livrado de quase 21 anos de ditadura militar e conseguira por meios pacíficos implantar o Estado de Direito. Não foram os desajuizados movimentos armados que nos devolveram a sonhada democracia, mas, sim, a paciência e a competência de políticos habilidosos, como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Teotônio Villela e muitos outros.
Os protestos de rua, enfim, pareciam fortalecer o regime democrático e demonstrar ao mundo que o Brasil seguia o seu caminho com grande respeito aos descontentamentos de pessoas ou grupos. Mesmo que aqueles mascarados de pouco cérebro e incontida força bruta usassem os movimentos de rua para arrebentar lojas e bancos, restava a sensação que isso era tão somente um pequeno preço para a manutenção das liberdades democráticas.
Lamentavelmente, porém, os protestos de rua converteram-se numa espécie de modismo, espalharam-se como fogo no mato seco e hoje se prestam muito mais a impor sofrimentos às populações das grandes cidades do que ao atendimento das reivindicações das minorias. Chegamos ao ponto extremo de presenciar coisas inusitadas e incompreensíveis, como, por exemplo, grupos reduzidos de pessoas interromperem avenidas e estradas como forma de externar seus descontentamentos, causando, como consequência, sofrimento a milhares de outras de pessoas.
Esta é a grande contradição da nossa democracia: garante-se o direito de expressão e manifestação, ao mesmo tempo que se tolhe o de poder circular livremente, com a agravante de que a maioria prejudicada é infinitamente superior à minoria em protesto.
Avulta, de outra parte, a enorme capacidade de tolerância do brasileiro. Sim, as pessoas das grandes cidades que sofrem todos os dias com as consequências dessas manifestações se mantêm inconformadas, mas ainda silenciosas. Caso despertem, e se organizem, é possível prever o que poderá acontecer.
É sempre bom imaginar o que ocorreria nos Estados Unidos, país exemplar de democracia, se um grupo de pessoas, a pretexto de reivindicar direitos, resolvesse interditar a Quinta Avenida, em Nova York, como fazem em São Paulo com a Avenida Paulista. Nós nos acostumamos facilmente à desordem, assim como engolimos sem protestar a escalada da corrupção. Estamos, enfim, vivendo um regime de desordem em que o Estado, anestesiado e preguiçoso, acha melhor nada fazer, por ser mais cômodo e, também, porque reprimir significaria criar o risco de perda de votos para determinados candidatos.
Já se disse tantas vezes que a desordem emergente das manifestações de minorias põe de joelhos as maiorias. O pior é que crescem em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e outras capitais sem que nenhuma consequência atinja os manifestantes. É como se existisse uma tácita autorização para que cada um faça o que quiser e nada acontecerá. A ausência de contenção da desordem representa um estímulo crescente, que a cada dia assume dimensão maior, mostrando que o porre de democracia, característica de nossos dias, como toda embriaguez, encerra perigos e consequências que o Estado se nega a enxergar.
Há um claro desgoverno em desfavor da maioria e que se mostra insensível aos sofrimentos das pessoas que trabalham e produzem. Essa insensibilidade é inimiga do País, porque impõe prejuízos econômicos a muitos e resulta na queda da produção.
Não se espera nem se deseja o uso de violência contra os manifestantes nas ruas, mas não pode e não deve o Estado brasileiro permitir que sejam massacrados, espezinhados os direitos das pessoas que nada têm que ver com essas manifestações e ficam prisioneiras em congestionamentos ou nas filas de ônibus.
Os maus exemplos sempre frutificam. Com a greve ilegal dos motoristas e cobradores de ônibus em São Paulo, pondo de joelhos uma boa parte dos seus moradores, outros profissionais de outras cidades logo aprenderam que esse seria um bom caminho, porque, afinal, não houve consequência alguma para os grevistas que sufocaram a população. Mas essa, infelizmente, parece ser a regra que norteia tais situações. Meses atrás, os servidores do metropolitano de São Paulo fizeram dias seguidos de greve, causando enormes sofrimentos à população. E sabem o que aconteceu a eles? Nada, absolutamente nada.
A pessoa que viola a lei e os direitos de terceiros sem ser punida acaba convencida de que sua conduta pode ser repetida infinitas vezes, a seu gosto. Isso vem ocorrendo entre nós e nada está sendo feito para restabelecer a ordem e o respeito que é devido à maioria. A democracia, em sua gênese, acaba desfigurada com essa conduta e vai contribuindo para sepultar a ideia do Estado de Direito, que foi a tônica nos debates para a aprovação da Constituição federal de 1988.
O Estado de Direito no Brasil, realmente, com essa conduta, sofre deformação bastante grave, porque o princípio da soberania popular e da submissão à lei passou a ser negado a todo momento. É um erro muito grave dos governantes permanecerem como simples espectadores desses acontecimentos. Exemplo assustador pode ser extraído da greve ilegal dos motoristas e cobradores de ônibus em São Paulo, em que somente após dois dias de caos na cidade a Polícia Militar acordou e entendeu que deveria policiar na origem a saída dos ônibus. Parece que havia muita gente dormindo nos gabinetes.
DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM