O Globo
Mesmo nesse nosso mundo digitalmente enredado, sabemos que sapos espertos podem nos confundir
“No tempo em que só havia índios, uma mulher convidou seu marido e dois filhos para irem à roça apanhar batatas. Lá chegando, ela tirou as batatas e o marido foi caçar. Este, no mato, encontrou um rastro de tatu e o seguiu. Depois de muito andar, descobriu a toca e cavou para pegar o tatu. Distraído, não viu que um sapo do tamanho de um homem se aproximava pelas suas costas. O sapo vinha pulando e tinha uma borduna. Encontrando o índio distraído, ele o matou a bordunadas e cortou o seu corpo em duas partes, deixando no local a superior e levando com ele a inferior. Chegando no local onde estava a mulher, o sapo falou: ‘mulher, já cheguei, olhe o que eu cacei para vocês!’ E dizendo isso, mostrou-se com a parte inferior do corpo do marido que havia matado. Com muito medo, a mulher resolveu enganar o sapo. Disse que ele ficasse perto do moquém enquanto ela ia apanhar lenha para assar mais batatas. O sapo comia as batatas e a mulher apanhava lenha. Na verdade, ela ia cada vez mais longe até que chegou na aldeia. Dando falta da mulher, o sapo seguiu seu rastro mas, vendo que havia sido logrado, voltou para o mato cansado de tanto pular. Chegando em casa, a mulher contou ao irmão o ocorrido. Este, que era dono de um cachorro bom para acuar sapo, foi atrás do matador com alguns companheiros. Cercado pelos índios, o irmão da mulher pegou seu arco, afinou sua ponta e o cravou nas costas do sapo, sendo seguido pelo grupo. Vendo que o sapo estava morto, os índios tentaram identificá-lo. Viram, porém, que era difícil porque ele tinha pernas e braços de gente, mas o corpo era muito gordo. Na dúvida, chamaram uma mulher velha. Como ela era quase cega, apalpou todo o corpo do sapo para, finalmente, dizer: isto não é outra coisa senão o prí–ti (o sapo). Ele é muito perigoso porque mata gente.”
Comentários do contador: “O sapo é muito venenoso e se um cachorro o morde ele morre logo. Mas o sapo tem as mãos e as pernas iguais às de um humano e, além do mais, ele tinha uma borduna, igual à dos índios. Mas a cabeça e o corpo são diferentes — são gordos. O sapo não tem medo da gente, embora seja muito feio. É o oposto do macaco, que se parece com índio mas tem um jeito contrário ao nosso.”
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O que fazer com essa história? Qual o seu significado?
Essas questões foram resgatadas pela obra magna de Claude Lévi-Strauss, as suas “mitológicas”. Mas elas são uma questão perene dos etnólogos, que toparam com esses relatos enigmáticos transbordantes de limpidez e, no entanto, sem sentido; exceto, talvez, se forem levados às suas últimas consequências. Se forem tomados como testemunhos de instâncias nas quais, por algum motivo, percebemos as semelhanças entre sapos e humanos. Mesmo nesse nosso mundo digitalmente enredado, sabemos que sapos espertos podem nos confundir.
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Num outro plano, essa história pode ser aproximada a um filme musical, a um conto de Kafka, Machado ou Kundera bem como aos desenhos de Disney, se bem que, nesse caso, os “bichos” são americanos e como tal se comportam. É sabido que o Pato Donald serviu na Marinha e que Mickey, o rato, foi fuzileiro naval e é membro do Partido Republicano. O extraordinário sucesso de Harry Porter revela uma nostalgia de narrativas deste tipo?
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Em terreno conhecido nosso, essas burlas entre sapos e humanos continuam sendo o forte dos elos grosseiros e desonestos entre empresas e o governo no nosso singular social-capitalismo. Ou você acha que John Davison Rockefeller — bilionário exemplar e magnata da indústria do petróleo — compraria a refinaria de Pasadena?
Tudo sugere que o governo pensa que estamos no tempo em que os animais falavam e os sapos não tinham veneno.