Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, maio 07, 2014

Ainda surtado Roberto Da Matta

O Globo

Mesmo nesse nosso mundo digitalmente enredado, sabemos que sapos espertos podem nos confundir

Continuo revendo meu velho material etnológico, colhido entre os nativos de língua gê. Eis uma história da descoberta do sapo pelos “índios” (ou humanos) que eu escutei numa sexta-feira chuvosa, num 4 de abril de 1966:
“No tempo em que só havia índios, uma mulher convidou seu marido e dois filhos para irem à roça apanhar batatas. Lá chegando, ela tirou as batatas e o marido foi caçar. Este, no mato, encontrou um rastro de tatu e o seguiu. Depois de muito andar, descobriu a toca e cavou para pegar o tatu. Distraído, não viu que um sapo do tamanho de um homem se aproximava pelas suas costas. O sapo vinha pulando e tinha uma borduna. Encontrando o índio distraído, ele o matou a bordunadas e cortou o seu corpo em duas partes, deixando no local a superior e levando com ele a inferior. Chegando no local onde estava a mulher, o sapo falou: ‘mulher, já cheguei, olhe o que eu cacei para vocês!’ E dizendo isso, mostrou-se com a parte inferior do corpo do marido que havia matado. Com muito medo, a mulher resolveu enganar o sapo. Disse que ele ficasse perto do moquém enquanto ela ia apanhar lenha para assar mais batatas. O sapo comia as batatas e a mulher apanhava lenha. Na verdade, ela ia cada vez mais longe até que chegou na aldeia. Dando falta da mulher, o sapo seguiu seu rastro mas, vendo que havia sido logrado, voltou para o mato cansado de tanto pular. Chegando em casa, a mulher contou ao irmão o ocorrido. Este, que era dono de um cachorro bom para acuar sapo, foi atrás do matador com alguns companheiros. Cercado pelos índios, o irmão da mulher pegou seu arco, afinou sua ponta e o cravou nas costas do sapo, sendo seguido pelo grupo. Vendo que o sapo estava morto, os índios tentaram identificá-lo. Viram, porém, que era difícil porque ele tinha pernas e braços de gente, mas o corpo era muito gordo. Na dúvida, chamaram uma mulher velha. Como ela era quase cega, apalpou todo o corpo do sapo para, finalmente, dizer: isto não é outra coisa senão o prí–ti (o sapo). Ele é muito perigoso porque mata gente.”
Comentários do contador: “O sapo é muito venenoso e se um cachorro o morde ele morre logo. Mas o sapo tem as mãos e as pernas iguais às de um humano e, além do mais, ele tinha uma borduna, igual à dos índios. Mas a cabeça e o corpo são diferentes — são gordos. O sapo não tem medo da gente, embora seja muito feio. É o oposto do macaco, que se parece com índio mas tem um jeito contrário ao nosso.”
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O que fazer com essa história? Qual o seu significado?
Essas questões foram resgatadas pela obra magna de Claude Lévi-Strauss, as suas “mitológicas”. Mas elas são uma questão perene dos etnólogos, que toparam com esses relatos enigmáticos transbordantes de limpidez e, no entanto, sem sentido; exceto, talvez, se forem levados às suas últimas consequências. Se forem tomados como testemunhos de instâncias nas quais, por algum motivo, percebemos as semelhanças entre sapos e humanos. Mesmo nesse nosso mundo digitalmente enredado, sabemos que sapos espertos podem nos confundir.
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Num outro plano, essa história pode ser aproximada a um filme musical, a um conto de Kafka, Machado ou Kundera bem como aos desenhos de Disney, se bem que, nesse caso, os “bichos” são americanos e como tal se comportam. É sabido que o Pato Donald serviu na Marinha e que Mickey, o rato, foi fuzileiro naval e é membro do Partido Republicano. O extraordinário sucesso de Harry Porter revela uma nostalgia de narrativas deste tipo?
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Em terreno conhecido nosso, essas burlas entre sapos e humanos continuam sendo o forte dos elos grosseiros e desonestos entre empresas e o governo no nosso singular social-capitalismo. Ou você acha que John Davison Rockefeller — bilionário exemplar e magnata da indústria do petróleo — compraria a refinaria de Pasadena?
Tudo sugere que o governo pensa que estamos no tempo em que os animais falavam e os sapos não tinham veneno.

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