As imagens do presente lembram o filme do passado. Na Revolução Francesa, em 1789, os sofridos camponeses enfrentam, simultaneamente, os senhores feudais e o clero. Afinal, a Igreja, grande detentora das terras da Europa Ocidental, abençoava a corvéia e, em troca do dízimo, dava proteção espiritual ao feudalismo. Em Paris, a revolta dos ''sans-culottes'' derruba a Bastilha, inaugurando a Idade Contemporânea. Fim da servidão.
Triunfam as idéias iluministas. Novos filósofos acuam a superstição medieval, atacando os ditames absolutos da religião. O povo e a nascente burguesia procuram seu espaço na História. A ciência ainda engatinha, lançando luzes na escuridão. Chega o Renascimento.
Hoje, tudo parece claro. Mas foi longa a travessia da razão. Desde que o físico Galileu Galilei, em 1633, acabou denunciado por heresia à Santa Inquisição, o obscurantismo paulatinamente recuou. Apenas no século 19, todavia, restava vencido. Mesmo assim, seu negro espectro, alimentado pela ignorância, ronda escondido por aí.
Pense na reforma agrária. Desde a Grécia antiga se relatam as lutas no campo. Esparta, oligárquica, ao derrotar Atenas, progressista, cria obstáculos à democracia rural. Mais tarde, no Império Romano, Caio Graco impulsiona, não sem oposição, o direito agrário, garantindo à plebe o acesso à terra.
No mundo moderno, em 1910, Emiliano Zapata e Pancho Villa levantam as massas camponesas do México. O revolucionários do Exército de Libertação zapatista tomam terras no fuzil. O país vive enorme confusão social. A regularização fundiária vem somente em 1934, com o presidente Cárdenas, que recria os ''ejidos'', forma comunitária de trabalho rural, baseada na cultura indígena.
Em 1917 ocorre a Revolução Russa, inaugurando o regime comunista no mundo. A agricultura é socializada na marra, surgindo os ''kolcoses''. Passa o tempo. Fidel Castro toma o poder em Cuba, em 1959. O socialismo, pela primeira vez, bate às portas da América. Toda propriedade rural acima de 420 hectares é nacionalizada. O Partido Comunista passa a comandar a agricultura.
Pela via democrática, Salvador Allende vence as eleições presidenciais no Chile, em 1970. Radicaliza seu governo e rompe a coalizão política que o sustenta, decretando massiva reforma agrária. Em três anos, 47% das terras cultiváveis são redistribuídas em pequenos lotes. Apimenta a receita da Bolívia e do Peru, onde chefes militares decretam a repartição da terra. O latifúndio vira minifúndio.
A luta pela reforma agrária quase sempre esteve associada à idéia do socialismo, utópico ou real. E nunca ocorreu tranqüilamente. Momentos de ruptura causam, é obvio, traumas. No México revolucionário, dizem ter morrido 600 mil pessoas. Na Rússia, a coletivização forçada causou 6 milhões de mortes. Allende tombou morto. Manteve a sina de Zapata, também assassinado. Como Robespierre, guilhotinado.
Na História latino-americana, especialmente no Brasil, por longo tempo se cultivaram, na esquerda, duas unanimidades: todos contra o imperialismo norte-americano e contra o latifúndio. Neles residiriam os grandes males do subdesenvolvimento. A redistribuição fundiária, nesse sentido, seria imprescindível ao progresso. Justiça social dentro do capitalismo.
Passam-se quatro décadas. O socialismo acorda do sonho, ou pesadelo. A globalização da economia faz esquecer o imperialismo e o latifúndio se transforma em grande empresa rural. Com o êxodo do campo, o Brasil se urbaniza forte e rapidamente. Vem a modernização tecnológica, abre-se o cerrado. A agricultura nacional empareda as nações ricas.
Muda o mundo. A reforma agrária perde sentido econômico. Mas permanece a desigualdade social, amargo fruto da História nascida nas capitanias hereditárias. Como democratizar a terra?
Desse dilema vive o MST. Nascido na época da utopia socialista, quando os revolucionários encantaram a juventude, a organização teima em desafiar o Estado democrático de Direito. Rejeita o poder republicano. Despreza as instituições. Toma a força em suas mãos, afronta a liberdade individual. Rema contra a maré.
Campos de pesquisa agronômica são destruídos pelas mulheres da Via Campesina. Primeiro, no Rio Grande do Sul, depois no Paraná, seguido por São Paulo. Nas plantas transgênicas, tanto quanto na pesquisa com células-tronco, a biotecnologia tromba com a intolerância. A resistência ao avanço científico carrega o semblante do atraso. A história da ciência comprova que torto nunca está o conhecimento, mas sim sua apropriação social.
Nas mãos erguidas, os sem-terra denunciam seu obscurantismo violento. Ora, não se usam mais foices no campo. Juntamente com a enxada, tais instrumentos de trabalho pertencem ao passado. Na Europa, ou na Rússia, a foice, de cabo curto, ceifava o trigo. No Brasil, com longo cabo, roçava a pastagem para o gado. Esta, em lugares ermos e pedregosos, ainda vale nas empreitadas. No mais, aposentou-a a tecnologia mecânica.
Pode conferir. São novas as foices erguidas pelos invasores de terras. Quem as brande pouco as utiliza. Tal como na época da Revolução Francesa, a lâmina afiada se transforma em arma, lá mortal, aqui intimidatória. Causam medo as estripulias desse movimento, crescentemente mascarado. Quem cobre o rosto esconde maldade.
Invadir fazendas, em bandos, tem a marca do antigo. Na cidade, a foice e o facão do MST configurariam crime contra a ordem pública. Na roça, assustam a polícia. E ganham notoriedade.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br
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