Mas vai ter que ir até o fim, pois obra é das poucas coisas no mundo que não se pode largar no meio |
No começo é aquele entusiasmo, aquela alegria; o dia passa rápido, e na hora de dormir só se deseja uma coisa: que a noite acabe logo para que o amanhã seja ainda melhor que o de hoje, cheio de novidades e descobertas. De que estávamos falando, de um casamento ou de uma obra? Não importa, é quase a mesma coisa -com todo o respeito.
Agora, a sério: a primeira parede derrubada é um sonho, de tão bom. Sai o sofá, testemunha de acontecimentos trepidantes, sai a mesa onde você serviu as mais deliciosas comidinhas para vários namorados, uns que valeram a pena e outros que é melhor nem lembrar. No dia em que sai a cama, é como uma lavagem cerebral. Ah, daqui para a frente, tudo vai ser diferente -completamente diferente, com a ajuda de Deus.
Chega a hora de escolher os revestimentos; o banheiro vai ser de que cor? Uma jacuzzi, ou uma banheira normal? A sala vai ter que combinar com seu atual estado de espírito, é claro. Em tons dramáticos ou tipo clean? Cheia de objetos ou totalmente despojada?
Já sabendo que é sujeita a mudanças, é bom não jogar nada fora. Manda embalar, põe no sótão do sítio de alguma amiga, porque como já se conhece bem, no próximo ano pode querer mudar tudo de novo.
Mas os meses vão passando e um dia você acorda cansada. Aquele cheiro de poeira já não é mais tão delicioso, e ter que passar por cima do entulho para chegar à cozinha -bem, existem maneiras mais agradáveis de viver. Mas vai ter que ir até o fim, pois obra é das poucas coisas no mundo que não se pode largar no meio. Ah, para que foi inventar?
Deus é grande, só que a paciência e o dinheiro vão acabando, a casa não fica pronta e tem que tomar 500 decisões por dia. "A senhora vai querer a tomada de telefone da sala em que lugar?" Difícil saber, se ainda nem decidiu onde vai colocar o sofá. "E a tomada da televisão?", isso com o eletricista em pé na sua frente, esperando a resposta, que tem que ser rápida. Só um homem consegue tomar decisões tão rápidas -um homem, pelo amor de Deus.
Mas pensa: quis ser independente, viver sozinha, desfrutar da mesma liberdade que eles, então agora resolva, e rapidinho. Ai.
Resolve; provavelmente mal, mas resolve, e as coisas vão andando. Sem o mesmo entusiasmo, a mesma alegria, a mesma paixão dos primeiros tempos, é bem verdade, mas indo. Até que um dia o chefão da obra -que não te agüenta mais nem você a ele- comunica que está tudo pronto. Você, que tinha pedido guarita na casa de uma amiga nos últimos 15 dias, se instala, radiante. E aí começa a segunda etapa.
O chão de mármore, que havia sido polido por um alto especialista, está imundo e arranhado; a estante precisando de mais duas prateleiras, o que implica chamar o carpinteiro -que sumiu do mapa- e depois o lustrador. As lindas plantas estão todas respingadas de tinta e você bem sabe quanto custa um vasinho hoje em dia. E o cinto preto de St. Laurent que custou 100, onde está? E a pulseira do Marrocos? Só falta procurar no freezer, mas aí seria demais. Colocar os quadros, só com bucha; o controle remoto sumiu, aquele anel que deixou dentro do cinzeiro desapareceu, a base do telefone sem fio se evaporou; olha e vê os preciosos CDs cheios de poeira, dentro de um saco de lixo azul que já estava indo com o último entulho, ai meu Deus.
Quando abre os armários, que deixou trancados, vê os cabides cobertos de poeira, aquela bem grossa; imagine os vestidos, como não devem estar. Difícil, o fim de uma obra; passa pela cabeça que talvez seja mais fácil acabar com um casamento.
Isso quando a obra não acaba com o casamento.