Verdade? Que verdade? - MARCO ANTONIO VILLA
Não se avança na democracia. E a comissão será um rotundo fracasso
Foi saudada como um momento histórico a designação dos membros da Comissão da Verdade. Como tudo se movimenta lentamente na presidência de Dilma Rousseff, o fato ocorreu seis meses após a aprovação da lei 12.528. Não há qualquer justificativa para tanta demora. Durante o trâmite da lei o governo poderia ter desenhando, ao menos, o perfil dos membros, o que facilitaria a escolha.
Houve, na verdade, um desencontro com a história. O momento para a criação da comissão deveria ter sido outro: em 1985, quando do restabelecimento da democracia. Naquela oportunidade não somente seria mais fácil a obtenção das informações, como muitos dos personagens envolvidos estavam vivos. Mas — por uma armadilha do destino — quem assumiu o governo foi José Sarney, sem autoridade moral para julgar o passado, pois tinha sido participante ativo e beneficiário das ações do regime militar.
O tempo foi passando, arquivos foram destruídos e importantes personagens do período morreram. E para contentar um setor do Partido dos Trabalhadores — aquele originário do que ficou conhecido como luta armada — a presidente resolveu retirar o tema do esquecimento. Buscou o caminho mais fácil — o de criar uma comissão — do que realizar o que significaria um enorme avanço democrático: a abertura de todos os arquivos oficiais que tratam daqueles anos.
É inexplicável o período de 42 anos para que a comissão investigue as violações dos direitos humanos. Retroagir a 1946 é um enorme equívoco, assim como deveria interromper as investigações em 1985, quando, apesar da vigência formal da legislação autoritária, na prática o país já vivia na democracia — basta recordar a legalização dos partidos comunistas. Se a extensão temporal é incompreensível, menos ainda é o prazo de trabalho: dois anos. Como os membros não têm dedicação exclusiva e, até agora, a estrutura disponibilizada para os trabalhos é ínfima, tudo indica que os resultados serão pífios. E, ainda no terreno das estranhezas e sem nenhum corporativismo, é, no mínimo, extravagante que tenha até uma psiquiatra na comissão e não haja lugar para um historiador.
A comissão foi criada para "efetivar o direito à memória e a verdade histórica". O que é "verdade histórica"? Pior são os sete objetivos da comissão (conforme artigo 3º), ora indefinidos, ora extremamente amplos. Alguns exemplos: como a comissão agirá para que seja prestada assistência às vítimas das violações dos direitos humanos? E como fará para "recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional"? De que forma é possível "assegurar sua não repetição"?
O encaminhamento dado ao tema pelo governo foi desastroso. Reabriu a discussão sobre a lei de anistia, questão que já foi resolvida pelo STF em 2010. A anistia foi fundamental para o processo de transição para a democracia. Com a sua aprovação, em 1979, milhares de brasileiros retornaram ao país, muitos dos quais estavam exilados há 15 anos. Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Miguel Arraes, Leonel Brizola, entre os mais conhecidos, voltaram a ter ativa participação política. Foi muito difícil convencer os setores ultraconservadores do regime militar que não admitiam o retorno dos exilados, especialmente de Leonel Brizola, o adversário mais temido — o PT era considerado inofensivo e Lula tinha bom relacionamento com o general Golbery do Couto e Silva.
Não é tarefa fácil mexer nas feridas. Há o envolvimento pessoal, famílias que tiveram suas vidas destruídas, viúvas, como disse o deputado Alencar Furtado, em 1977, do "quem sabe ou do talvez", torturas, desaparecimentos e mortes de dezenas de brasileiros. Mas — e não pode ser deixado de lado — ocorreram ações por parte dos grupos de luta armada que vitimaram dezenas de brasileiros. Evidentemente que são atos distintos. A repressão governamental ocorreu sob a proteção e a responsabilidade do Estado. Contudo, é possível enquadrar diversos atos daqueles grupos como violação dos direitos humanos e, portanto, incurso na lei 12.528.
O melhor caminho seria romper com a dicotomia — recolocada pela criação da comissão — repressão versus guerrilheiros ou ação das forças de segurança versus terroristas, dependendo do ponto de vista. É óbvio que a ditadura — e por ser justamente uma ditadura — se opunha à democracia; mas também é evidente que todos os grupos de luta armada almejavam a ditadura do proletariado (sem que isto justifique a bárbara repressão estatal). Nesta guerra, onde a política foi colocada de lado, o grande derrotado foi o povo brasileiro, que teve de suportar durante anos o regime ditatorial.
A presidente poderia ter agido como uma estadista, seguindo o exemplo do sul-africano Nelson Mandela, que criou a Comissão da Verdade e Reconciliação. Lá, o objetivo foi apresentar publicamente — várias sessões foram transmitidas pela televisão — os dois campos, os guerrilheiros e as forças do apartheid. Tudo sob a presidência do bispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz. E o país pôde virar democraticamente esta triste página da história. Mas no Brasil não temos um Mandela ou um Tutu.
Pelas primeiras declarações dos membros da comissão, continuaremos prisioneiros do extremismo político, congelados no tempo, como se a roda da história tivesse parado em 1970. Não avançaremos nenhum centímetro no processo de construção da democracia brasileira. E a comissão será um rotundo fracasso.
MARCO ANTONIO VILLA é historiador.
O Globo
22/05/2012
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2012
(2586)
-
▼
maio
(77)
- Lula e Gilmar Mendes: conversa errada, no local er...
- Celso de Mello: ação de Lula foi indecorosa - O Globo
- De parar o trânsito Miriam Leitão
- Danuza Leão - Olé
- Espalha brasa:: Dora Kramer
- As bienais e as vanguardas:: Ferreira Gullar
- Falsos remédios :: Suely Caldas
- "A Decadência do Ocidente":: Vinicius Torres Freire
- O euro, ou vai ou racha:: Celso Ming
- Crescimento modesto em 2012:: José Roberto Mendonç...
- O "B" e o "C":: Merval Pereira
- Fernando Gabeira Coisa Nossa
- Marco Antônio Villa Verdade ? que verdade?
- Mantega cria o “realismo fantástico” do câmbio
- Augusto Nunes Vaccarezza mostrou que no peito de a...
- Reinaldo Azevedo 20/5/12
- Suely Caldas. Dilemas do setor elétrico
- “Cosa Nostra” - DORA KRAMER
- Freada na Argentina - CELSO MING O Estado de S....
- Tiro no pé - MERVAL PEREIRA
- Há espaço para crescer mais - ALBERTO TAMER
- Campo da floresta - MIRIAM LEITÃO
- Seca a CPI do Cachoeira - EDITORIAL O ESTADÃO
- Sobre a Comissão da Verdade - CELSO LAFER
- A nova ordem e a força social - GAUDÊNCIO TORQUATO
- Um pequeno grande jornal - FERREIRA GULLAR
- De sacolinhas e pieguices - DANUZA LEÃO
- A mulher a ciência e o coco João Ubaldo
- Agenda econômica em fase de mudança. Editorial O G...
- camarada que pôs fogo na crise - VINICIUS TORRES F...
- Cláudio Humberto
- Maratona e reina dos bancos. Vinicius Torres Freire
- Celso Ming. Energia mais barata
- Exceção a velha regra. Dora Kramer
- Pêndulo da balança. Miriam leitão
- Meia verdade,meia mentira. Carlos Alberto Sardenberg
- Agricultura salva PIB
- A v aia dos prefeitos. Editorial O Globo
- Para fazer a lei `pegar' - EDITORIAL O ESTADÃO
- Um luxo Merval Pereira
- Querem salvar a Delta via BNDES - SÉRGIO GUERRA
- A crise europeia está em plena forma - GILLES LAPOUGE
- Como apagar o desejo de consumir drogas - FERNANDO...
- Maílson da Nóbrega (VEJA)
- Augusto Nunes:..Volta ao palco o papagaio de pirata
- O preço do crescimento :Raul Velloso
- Fatalidades e voluntária os Pedro Malan
- Merval Pereira Sem revanchismos
- Lucia Guimarães Uma trama em que em que terrorismo...
- 'Carcará' e Falcão contra a liberdade de expressão...
- Reinaldo Azevedo:
- Sem pai nem mãe - Dora Kramer -
- Reinaldo Azevedo - Blog - VEJA.com
- CLAUDIO HUMBERTO
- Percepção equivocada - NILTON BONDER
- As empresas, a corrupção e a democracia - JORGE AB...
- Agenda do precipício - JOSÉ PAULO KUPFER
- Trabalho e a dimensão econômica? - JOSÉ PASTORE
- O naufrágio da Europa - JOÃO PEREIRA COUTINHO
- O fator Hollande - CELSO MING
- Rio+20 e o Código Florestal ANTONIO DELFIM NETTO
- Roberto Civita não é Rupert Murdoch - EDITORIAL O ...
- A CPI será uma feira de vaidades - ARNALDO JABOR
- Mobilidade emperrada - EDITORIAL O ESTADÃO
- Esses europeus revoltados - PAUL KRUGMAN
- Os socialistas e a massa falida - VINICIUS TORRES ...
- Pelo crescimento - MERVAL PEREIRA
- Um novo caminho - MIRIAM LEITÃO
- Segredo de polichinelo - DORA KRAMER
- 4/5/2012
- A CPI do Cachoeira começou mal Merval Pereira,
- Reinaldo Azevedo
- No popular Merval Pereira
- Cabral quis ser chique, foi brega; por Elio Gaspari
- Baixa ansiedade -Dora Kramer
- Discursar é mais fácil Celso Ming
- O velho Brasil da rua e da casa Roberto DaMatta
-
▼
maio
(77)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA