Merval Pereira 14.8.2004 Espetáculo e resultados
O “jogo da paz”, como está sendo chamada a partida de futebol que a seleção brasileira fará na próxima quarta-feira em Porto Príncipe contra a seleção do Haiti, faz parte do que a revista especializada em política internacional “Foreign Affairs” tem chamado de “novo protagonismo brasileiro”, e que o chanceler do governo Fernando Henrique, Celso Lafer, classifica de “política-espetáculo”. O fato é que quase dois anos depois de tomar posse o presidente Lula tem na política externa um dos pontos altos de um governo sem grandes destaques além da economia.
Algumas ações são claramente demagógicas, como a proposta de um fundo internacional contra a fome com a taxação de venda de armas. Outras, como o jogo de futebol da seleção brasileira no Haiti, embora nascida da cabeça de uma especialista em marketing, têm um lado meritório que reafirma nossa liderança no continente.
Superado um primeiro momento dominado por um esquerdismo exacerbado, a atuação de Lula nos fóruns internacionais e uma bem montada ação de fortalecimento da liderança do país na área do Mercosul e na América Latina têm dado ao governo uma dimensão internacional bastante positiva.
O G-20, grupo organizado pelo Brasil e pela Índia para enfrentar os Estados Unidos e a União Européia nas negociações internacionais, foi sem dúvida uma vitória da diplomacia brasileira, e conseguimos avançar agora nas negociações na Organização Mundial do Comércio. Para o professor de política internacional Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, “a política externa é o lado que o governo do PT teve menos dificuldade de implantar uma política coerente, e isso se deveu em larga escala ao fato de já existir uma doutrina anterior, ligada ao secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães”.
O ex-chanceler Celso Lafer, no posfácio de seu livro recém-lançado “A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira”, diz que, no plano da postura, o governo Lula vem, até o momento, “timbrando em deliberadamente dissociar-se, em matéria de externa, do anterior”. Faz isso, segundo Lafer, para “dar uma satisfação ideológica interna compensando continuidades bastante explícitas com o governo anterior na condução da política macroeconômica”.
Lafer diz “ter dúvidas” sobre a utilização da política externa para satisfação ideológica interna, e diz que isso provoca “multiplicação das tensões e incertezas”. Para o professor Francisco Carlos Teixeira, o enfoque da nossa política externa realmente mudou: “Até Fernando Henrique, tínhamos uma obsessão no eixo norte-atlântico, com Estados Unidos e União Européia. O governo do PT abriu a possibilidade de parcerias estratégicas com China, Índia, África do Sul; ampliou o debate no interior do Mercosul”.
Hoje, segundo o professor Francisco Carlos Teixeira, a política externa está trabalhando como se fosse um tabuleiro tridimensional: “Parcerias estratégicas, onde entram também os Estados Unidos e a União Européia; o G-20, onde o papel do Brasil é de liderança regional muito importante que mudou a OMC. Fizemos quebrar a negociação em Cancun para ganhar essa negociação em Paris; e o Mercosul. Cada vez que a gente se mexe num desses tabuleiros, acumula força para o outro. É a melhor política externa brasileira desde a época do Geisel”, empolga-se.
Já Celso Lafer diz que, no plano político, “em função do estilo diplomático do governo Lula”, é possível detectar, “no tema sul-sul, uma ilusória aspiração de enrijecer o quadro internacional com uma nova polarização ideológica”.
A comparação com a política externa de um dos governos ditatoriais foi, por coincidência, também sutilmente lembrada pelo ex-presidente Fernando Henrique em recente palestra em seu instituto quando, na presença do novo embaixador americano no Brasil, fez uma análise histórica das relações dos dois países. Mas, evidentemente, sem a admiração contida no comentário do professor Teixeira.
Segundo o ex- presidente Fernando Henrique, “o período militar foi um período atritado, havia até no imaginário a bomba atômica. O que fizemos foi tirar da pauta os fatores de atrito que contaminavam a relação. Não podemos pensar que somos uma potência num continente em que há um poder hegemônico global. O Brasil cresceu economicamente, somos um global trader . Compare com o México ou a Argentina. Temos que ter um grau de confiança, e não ter alinhamento. Mas não podemos dizer que somos uma potência, com capacidade bélica, e vamos atuar. É de nosso interesse não ter conflitos com os EUA, para realizar os nossos interesses”.
O ex-presidente define como de interesse nacional uma política de não agressão à potência dominante. “Em vez de imaginar a afirmação nacional pela via militar, ou pela ingerência, imaginá-la pela via de uma sociedade mais democrática e uma economia mais pujante”. O ex-presidente não se referiu a ele, mas certamente estava pensando no chefe da Casa Civil, José Dirceu, que por várias vezes já defendeu publicamente o fortalecimento militar da América do Sul como maneira de a região se impor nas negociações internacionais.
Para Fernando Henrique, o marco dessa postura independente mas sem confrontação foi a negociação em Doha, pois “a definição efetiva de nossos interesses depende dos acordos multilaterais”. Fernando Henrique diz que o que faz a diferença é que, além da agricultura, somos um país industrializado e de serviços. “Quem compra serviços é o continente americano, a China compra soja e daqui a pouco vai produzir aço. O mercado que qualitativamente mais interessa é o dos EUA. Não é possível imaginar que podemos substituí-lo por mercados emergentes”.
Por realismo, o ex-presidente sugere “evitar conflito com os Estados Unidos, porque é perder”. Segundo Lafer, o estilo da política externa do governo Lula discrepa da definição tradicional: “Diplomacia inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”.
Entrevista:O Estado inteligente
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