LUÍS NASSIF
O atentado da rua Tonelero
Dias atrás os jornais rememoraram os 50 anos do atentado da rua Tonelero, contra Carlos Lacerda. Nele, morreu o Major Vaz. Pressionado pela opinião pública, algumas semanas depois o presidente Getúlio Vargas se suicidaria. Foi um dos episódios centrais da moderna história do país. Aquele episódio entrou de diversas maneiras na minha vida de moleque do interior. Lacerda era amigo do meu avô Issa, presidente da UDN de Poços e do Clube da Lanterna -a UDN particular do Lacerda. Foi por meio do meu avô -e seu sogro- que o jovem estudante Luiz Fernando Mercadante, até então aluno interno do Colégio Marista de Poços de Caldas, foi ao Rio para trabalhar com Lacerda e se tornou o mais promissor jovem jornalista político de seu tempo. A bem da verdade, eu não tinha idade nem tenho lembrança do episódio da rua Tonelero, quando ocorreu. Soube depois, pelas minhas tias, que Lacerda foi salvo dos pistoleiros graças à minha avó Martina, ela mesma, que escreveu do próprio punho o Salmo 90 que Lacerda guardava permanentemente na carteira. E ela soube de sua participação no episódio pelo próprio Lacerda, que, no dia seguinte, ligou para a casa do meu avô para agradecê-la e atribuir ao Salmo 90 o milagre de ter escapado vivo do atentado. Quando comecei minha carreira de jornalista, a primeira coisa que vó Martha fez foi escrever o Salmo 90 do próprio punho e me obrigar a guardar na carteira. Anos depois, no Colégio Marista, fui aluno de Rosa Branca, o irmão Gregório, descendente de Arthur Bernardes e um intelectual renascentista. Era pintor, artesão, preparou o único dicionário tupi-guarani existente -e que foi surrupiado por algum aluno inconformado com suas notas. Era parceiro do padre Quevedo naquelas lengalengas de desmistificar fenômenos espíritas. Um de seus feitos foi uma luva de parafina, reprodução perfeita da mão humana, com impressão digital e tudo, em que o dedo indicador formava um arco com o polegar -simbolizando o ato do padre dar a comunhão aos fiéis. Pois Rosa Branca contava ter sido a última pessoa a se despedir de Lacerda, na visita que ele fez ao seminário Marista na Tonelero, antes de sair para o saguão e levar os tiros. A terceira presença de Lacerda em Poços consistia na sua seguidora leal, Sandra Cavalcanti, que passava todas as férias no Colégio São Domingo. Acho que era irmã de uma das freiras de lá. Poucas vezes se viu na história do Brasil político mais carismático, jornalista mais brilhante, alma mais atormentada. Tinha em Brizola seu principal adversário em carisma. Havia Jânio, mas não tinha o porte épico de Lacerda. Juarez Távora, talvez. Lembro-me até hoje, no bar de meu avô, daquele herói imenso passando a mão na minha cabeça e prevendo: "Você será um udenista". Fui, mas só até os 14 anos. Mas Lacerda tinha a pose, o discurso, a coragem e um brilho incomuns. Quando estourou a Revolução, Castello cometeu a imprudência de enviá-lo a Paris, como embaixador do novo regime. No aeroporto estava toda a imprensa francesa o aguardando. A primeira pergunta foi: "Que revolução é essa que não tem sangue?". A primeira e última resposta foi: "Revolução no Brasil é que nem casamento na França". Malcriado. Mas brilhante. Anos atrás, comprei na Collectors gravações radiofônicas de discursos dele, acho que na rádio Globo. Não tinha a retórica amazônica dos políticos tradicionais. Tinha a fala clara, pausada, o raciocínio lógico que ia tecendo teias de argumento que enredavam os ouvintes. Sem formação econômica, mas dotado de uma lógica imbatível, enfrentou Roberto Campos no governo Castello Branco. E discutindo economia. Na gravação da Collectors pude apreciar o nível de seus argumentos. Certa vez indaguei a Campos qual a crítica que mais o afetara. Foi justamente a de Lacerda, que cunhou uma definição mortífera para a política econômica da época: "matava os pobres de fome, e os ricos, de raiva". De Getúlio, falo no próximo domingo.
Publicadoem: Sun, Aug 15 2004 1:27 PM
Entrevista:O Estado inteligente
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