FOLHA DE SP - 24/11/11
Por que os moradores da Rocinha não pensariam que houve apenas troca de uma máfia por outra?
A Rocinha não é bem uma favela. É um imenso bairro de classe média (mais ou menos baixa), que contém áreas de favela, como os barracos encostados no morro Dois Irmãos.
E é um bairro alegre: a proximidade entre a maioria dos moradores e seu local de trabalho faz com que as "favelas" da zona sul carioca não tenham o aspecto depressivo de dormitórios suburbanos.
Para os menos abastados, é ótimo viver em pequenas aldeias familiares, onde sempre há um parente para cuidar das crianças e ficar de olho nas posses. Na Rocinha, esse costume criou prédios de três ou quatro andares. O patriarca (nos anos 1950) fincou fundações boas e profundas, os filhos construíram em cima da laje dele. A precariedade das estruturas é apenas uma aparência, pela falta de reboco.
Enfim, no domingo, fui passear pela Rocinha pacificada.
Na estrada da Gávea, agora, os mototáxis exigem que, para subir na garupa, você coloque o capacete (que eles fornecem, claro).
Finalmente, a rua quatro, aberta pelo PAC em 2010, é transitável (tinha sido obstruída pelos bandidos, para que houvesse um acesso único ao bairro -mais fácil de controlar).
O turismo tem novas atrações: a academia onde treinava o Nem, a casa do Nem e o restaurante onde ele almoçava. Mas não há mais soldados do tráfico exibindo orgulhosamente suas armas. Para o turista, os policiais são menos pitorescos.
Sumiu a boca de fumo da via Apia (entre o restaurante Varandas -a picanha na chapa continua boa- e o Trapiá -sem vista, mas com ar-condicionado).
A venda de drogas continuará em outros lugares da cidade do Rio. O que foi abolido pela invasão não foi o tráfico, mas a independência de um enclave que o tráfico ocupava -policiando, administrando a Justiça, cobrando serviços. Por exemplo, a ADA (Amigos dos Amigos), na gestão de Nem, cobrava a "gatonet"; agora, será cobrada apenas a NET, sem gato. Para os usuários, não será uma grande mudança.
Domingo é o dia da feira do Boiadeiro (onde ainda é possível encontrar cabeças de porco, pés de boi, galinhas e coelhos vivos). Pela feira circulam policiais militares pesadamente armados. Duas semanas atrás, pela mesma rua, circulariam soldados da ADA, menos marciais, mas também garantes da ordem: um ladrão seria surrado, um estuprador poderia ser morto e desovado na mata.
Encontrei alguém que "mexeu com uma mulher do Nem" (ofereceu carona -cortesia excessiva). Quebraram-lhe a mandíbula. Nada de mais: nas terras de Fernandinho Beira-Mar, a mesma conduta teria dado tortura e morte.
O maior problema da ocupação pelos bandidos, para os moradores, era o estado de guerra: o tráfico defendia a Rocinha contra invasores de outros morros e contra a polícia, que era mais um grupo rival (o espectador de "Tropa de Elite 2" sabe que, muitas vezes, a substituição do tráfico pelas milícias foi parecida como a substituição de uma gangue por outra).
Conclusão: a Rocinha festejou a pacificação com cautela -e não tanto por medo da volta eventual do tráfico. Para quem foi vítima de um longo descaso, a questão da autoridade não é abstrata -no estilo: "Qual é a lei legítima à qual seria justo obedecer, a do Estado ou a do tráfico?". A questão é concreta e simples: "Quem me tratará melhor?".
O Brasil moderno, se quiser governar na Rocinha, deverá merecer a autoridade que ele pretende exercer, ou seja, deverá fazer o que ele, durante muito tempo, não fez: cuidar de seus sujeitos.
É bem possível, de fato, que, a partir de agora, os serviços sociais, culturais, escolares, administrativos e de saúde se desenvolvam com rapidez. Todos contam com isso (aluguéis e custo do metro quadrado na Rocinha subiram 50% numa semana).
Mesmo assim, não será fácil conquistar a confiança dos moradores. Afinal, se nós, aqui no asfalto, achamos que o Estado é corrupto, por que os moradores da Rocinha não pensariam que, até prova do contrário, na semana passada, houve apenas uma troca de uma máfia por outra?
A PM pediu confiança e espera que a comunidade denuncie esconderijos de armas e drogas. Pelos muros da Rocinha, lado a lado, há grafites da Amigos dos Amigos, cartazes com o número do disque-denúncia e outros com o número da corregedoria de polícia. Inquietante: que autoridade é esta, que, ao pedir confiança, deve pedir também ajuda em identificar os bandidos no seu próprio seio?
Por que os moradores da Rocinha não pensariam que houve apenas troca de uma máfia por outra?
A Rocinha não é bem uma favela. É um imenso bairro de classe média (mais ou menos baixa), que contém áreas de favela, como os barracos encostados no morro Dois Irmãos.
E é um bairro alegre: a proximidade entre a maioria dos moradores e seu local de trabalho faz com que as "favelas" da zona sul carioca não tenham o aspecto depressivo de dormitórios suburbanos.
Para os menos abastados, é ótimo viver em pequenas aldeias familiares, onde sempre há um parente para cuidar das crianças e ficar de olho nas posses. Na Rocinha, esse costume criou prédios de três ou quatro andares. O patriarca (nos anos 1950) fincou fundações boas e profundas, os filhos construíram em cima da laje dele. A precariedade das estruturas é apenas uma aparência, pela falta de reboco.
Enfim, no domingo, fui passear pela Rocinha pacificada.
Na estrada da Gávea, agora, os mototáxis exigem que, para subir na garupa, você coloque o capacete (que eles fornecem, claro).
Finalmente, a rua quatro, aberta pelo PAC em 2010, é transitável (tinha sido obstruída pelos bandidos, para que houvesse um acesso único ao bairro -mais fácil de controlar).
O turismo tem novas atrações: a academia onde treinava o Nem, a casa do Nem e o restaurante onde ele almoçava. Mas não há mais soldados do tráfico exibindo orgulhosamente suas armas. Para o turista, os policiais são menos pitorescos.
Sumiu a boca de fumo da via Apia (entre o restaurante Varandas -a picanha na chapa continua boa- e o Trapiá -sem vista, mas com ar-condicionado).
A venda de drogas continuará em outros lugares da cidade do Rio. O que foi abolido pela invasão não foi o tráfico, mas a independência de um enclave que o tráfico ocupava -policiando, administrando a Justiça, cobrando serviços. Por exemplo, a ADA (Amigos dos Amigos), na gestão de Nem, cobrava a "gatonet"; agora, será cobrada apenas a NET, sem gato. Para os usuários, não será uma grande mudança.
Domingo é o dia da feira do Boiadeiro (onde ainda é possível encontrar cabeças de porco, pés de boi, galinhas e coelhos vivos). Pela feira circulam policiais militares pesadamente armados. Duas semanas atrás, pela mesma rua, circulariam soldados da ADA, menos marciais, mas também garantes da ordem: um ladrão seria surrado, um estuprador poderia ser morto e desovado na mata.
Encontrei alguém que "mexeu com uma mulher do Nem" (ofereceu carona -cortesia excessiva). Quebraram-lhe a mandíbula. Nada de mais: nas terras de Fernandinho Beira-Mar, a mesma conduta teria dado tortura e morte.
O maior problema da ocupação pelos bandidos, para os moradores, era o estado de guerra: o tráfico defendia a Rocinha contra invasores de outros morros e contra a polícia, que era mais um grupo rival (o espectador de "Tropa de Elite 2" sabe que, muitas vezes, a substituição do tráfico pelas milícias foi parecida como a substituição de uma gangue por outra).
Conclusão: a Rocinha festejou a pacificação com cautela -e não tanto por medo da volta eventual do tráfico. Para quem foi vítima de um longo descaso, a questão da autoridade não é abstrata -no estilo: "Qual é a lei legítima à qual seria justo obedecer, a do Estado ou a do tráfico?". A questão é concreta e simples: "Quem me tratará melhor?".
O Brasil moderno, se quiser governar na Rocinha, deverá merecer a autoridade que ele pretende exercer, ou seja, deverá fazer o que ele, durante muito tempo, não fez: cuidar de seus sujeitos.
É bem possível, de fato, que, a partir de agora, os serviços sociais, culturais, escolares, administrativos e de saúde se desenvolvam com rapidez. Todos contam com isso (aluguéis e custo do metro quadrado na Rocinha subiram 50% numa semana).
Mesmo assim, não será fácil conquistar a confiança dos moradores. Afinal, se nós, aqui no asfalto, achamos que o Estado é corrupto, por que os moradores da Rocinha não pensariam que, até prova do contrário, na semana passada, houve apenas uma troca de uma máfia por outra?
A PM pediu confiança e espera que a comunidade denuncie esconderijos de armas e drogas. Pelos muros da Rocinha, lado a lado, há grafites da Amigos dos Amigos, cartazes com o número do disque-denúncia e outros com o número da corregedoria de polícia. Inquietante: que autoridade é esta, que, ao pedir confiança, deve pedir também ajuda em identificar os bandidos no seu próprio seio?