Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 15, 2007

A Venezuela depois do não


Chávez enfrenta agora uma nova oposição. Além
dos estudantes, ela recebeu o reforço de chavistas
descontentes, que se opõem à ditadura


Diogo Schelp, de Caracas

Fotos Oscar Cabral
Propaganda chavista em Caracas: Chávez aumenta a pressão sobre a oposição

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A piada que faz rir a Venezuela conta que Hugo Chávez proibiu enfeitar os presépios com imagens dos três reis magos. O motivo: se um rei, o da Espanha, já mandou o presidente venezuelano se calar em uma reunião de cúpula, imaginem três. O elemento assustador dessa anedota não é tanto a idéia de Chávez proibir um símbolo natalino (em 2006, ele chegou a abolir as árvores de Natal por considerá-las um ícone do imperialismo). O mais alarmante é o fato de refletir uma característica do governante: ele não tolera ser contrariado. No momento, os venezuelanos aguardam, apreensivos, pela resposta do coronel ao "não" que recebeu nas urnas no início do mês. Nas últimas duas semanas, ele se limitou a renovar ameaças e a reafirmar que usará outros meios para impor o "socialismo do século XXI" que a população rechaçou. Como a expressão é ambígua, vale prestar atenção na definição oferecida por um chavista de destaque: "Socialismo do século XXI é o mesmo que no século XX se viu na União Soviética e em Cuba, só que com petróleo", disse a VEJA José Pinto Marrero, líder dos Tupamaros, a tropa de choque chavista.

Mais do que uma simples derrota eleitoral infligida a um caudilho que se considerava imbatível, o referendo teve o efeito de criar uma nova oposição. Esta é composta de tal forma que o coronel não a pode acusar de golpismo, de ser porta-voz do "império americano" ou das "oligarquias da Venezuela" sem morder a língua. As acusações simplesmente não colam nos estudantes ou nos chavistas moderados que se rebelaram contra a tentativa de implantar uma ditadura no país. As duas novas forças políticas – o movimento estudantil e a ala democrática do chavismo – são agora motivo de esperança para os venezuelanos e uma dor de cabeça para Hugo Chávez. Há vários motivos para o surgimento de dissidência na cúpula chavista. Muitos políticos ligados ao regime perceberam que a centralização de poder na mão do coronel ia contra seus interesses. A reeleição sem limites, por exemplo, impedia o surgimento de um sucessor. A nova geografia política proposta por Chávez esvaziaria o poder de governadores e prefeitos. Obviamente, isso não agradou aos chavistas que ocupam esses cargos. Por fim, o partido único inventado pelo presidente foi visto, corretamente, como o fim da independência dos grupos políticos aliados ao governo.

A leveza com que Chávez desbarata o dinheiro público num país com mais pobres do que ricos ganhou nova evidência na semana passada, com a prisão nos Estados Unidos de três venezuelanos e um uruguaio. Os quatro sul-americanos tentavam montar uma operação para encobrir a origem de 790.000 dólares encontrados em uma maleta apreendida em um avião no aeroporto de Buenos Aires, em agosto. O portador da maleta era outro venezuelano, Guido Antonini Wilson, empresário bem relacionado com o governo chavista. No mesmo vôo, estavam um homem de confiança de Néstor Kirchner, representantes da estatal argentina de energia, Enarsa, e funcionários da PDVSA, a estatal petrolífera. Wilson, que tem passaporte americano, voltou para os Estados Unidos. Com ajuda do FBI, ele gravou uma conversa na qual os outros envolvidos admitiam que o dinheiro era do governo venezuelano e seria usado na campanha presidencial de Cristina Kirchner. Abertamente, eles colocaram Wilson diante da seguinte opção: assumir a propriedade do dinheiro e ter sua despesa paga pela PDVSA ou seus filhos correriam risco de vida. A nova presidente argentina, que assumiu num cenário econômico favorável (veja reportagem), está agora às voltas com um escândalo.

O episódio revela o que até o momento era difícil de provar: o uso secreto dos petrodólares de Chávez em campanhas eleitorais em outros países. Nesse aspecto, o plano do coronel de expandir sua influência aos países vizinhos sofreu um retrocesso com a rejeição de sua revolução pelos venezuelanos. "O projeto de Chávez passou a ser associado à derrota no referendo, e isso pode dificultar a vida dos presidentes da Bolívia e do Equador, que, como o venezuelano, tentam refundar seus países com uma nova Constituição", diz o cientista político Alfredo Ramos Jiménez, da Universidade de Los Andes, em Mérida.

A atividade internacional escusa é um dos motivos de insatisfação da ala mais responsável do chavismo, que começou a se afastar do coronel há um ano, quando ele decidiu instituir o partido único no país. Gente vinda de dentro do regime, eles sabem que a pressão sobre a oposição deve aumentar nas próximas semanas. "O ‘não’ dos eleitores ao projeto autoritário terá um efeito semelhante ao cala-boca do rei Juan Carlos, ao qual Chávez reagiu tornando-se ainda mais intransigente", diz o analista político venezuelano José Vicente Carrasquero. Instrumentos para endurecer não faltam. Nos últimos nove anos, desde que foi eleito presidente, Chávez cuidou de acumular poderes. Além do direito de governar por decreto, ele controla a Assembléia Nacional (apenas sete dos 167 deputados votaram contra a reforma que institucionalizaria a ditadura), a Suprema Corte (só um de seus membros pode ser considerado independente) e o Conselho Nacional Eleitoral. Chávez também pode usar a receita da PDVSA sem prestar contas a ninguém. Para completar, 21 dos 23 governadores estaduais são chavistas e oito emissoras de TV são controladas pelo governo. Em Caracas, um único canal aberto ainda se arrisca a colocar no ar notícias que possam desagradar Chávez. O Judiciário é abertamente usado como uma arma para intimidar a oposição. Quem discorda, sobretudo jornalistas, se vê acossado por processos judiciais. O líder estudantil Nixon Moreno, da cidade de Mérida, está há nove meses refugiado na Embaixada do Vaticano, em Caracas, para escapar da prisão devido a uma acusação estapafúrdia: a de ter estuprado uma policial durante uma manifestação de estudantes.

O general escolheu a democracia

O resultado do referendo não seria o mesmo não fosse o general reformado Raúl Isaías Baduel, ministro da Defesa de Chávez até cinco meses atrás. Primeiro, porque o militar, respeitado entre os chavistas, passou a denunciar o caráter autoritário da reforma constitucional, classificada por ele como uma tentativa de golpe de estado. Segundo, porque sua influência nas Forças Armadas serviu de incentivo para os comandantes militares do país, em reunião na noite do referendo, negarem-se a apoiar o projeto de Chávez de fraudar o pleito. Em seu escritório em Caracas, rodeado de estátuas de santos e guerreiros orientais, Baduel declarou a VEJA que o mais difícil ainda está por vir. "O presidente já deixou clara sua intenção de impor as reformas por outras vias, talvez valendo-se de seus poderes habilitantes", diz Baduel. "Por isso, como soldado que sou, acredito que, após termos conquistado uma posição estratégica, não é hora de ir dormir. É preciso consolidar a posição, mantendo a vigilância sobre o adversário."

O levante dos caras-pintadas

Freddy Guevara, de 21 anos, é um dos quatro principais líderes do movimento estudantil. Os jovens só despertaram para o risco da perda de liberdade representada por Chávez em maio deste ano, quando o governo fechou o canal RCTV, a emissora mais popular do país. Os estudantes venezuelanos transformaram-se na mais importante força de oposição à reforma constitucional de Chávez. "Foi uma mudança radical em nossa vida", diz Freddy. "Há cinco meses, estávamos jogando bola, estudando e namorando. De repente, passamos a ser chamados para debater ou tomar decisões com os militares, a Igreja, empresários e políticos." Freddy acha que agora precisa levar a sério as ameaças de morte feitas pelos Tupamaros, a tropa de choque de Chávez. Isso porque "os chavistas estão inconformados com a derrota". Freddy lamenta o fato de os estudantes venezuelanos que lutaram pela democracia jamais terem recebido alguma manifestação de apoio da UNE brasileira.

A lição do mentor de Chávez

De todos os aliados que abandonaram o presidente, Luis Miquilena é aquele que melhor conhece Chávez. Ex-comunista da antiga – ele fundou seu próprio partido na década de 40 –, Miquilena ficou amigo de Chávez em 1992, quando o coronel foi preso por um golpe fracassado. Após ser anistiado, em 1994, Chávez foi morar com Miquilena e sua esposa e acatou o conselho do amigo de usar meios democráticos para alcançar o poder. Depois de ajudar Chávez a se eleger pela primeira vez, Miquilena foi presidente da Assembléia que aprovou a Constituição de 1999 e ministro do Interior. Em 2002, ele deixou o governo e rompeu com o presidente, a quem acusa de tratar com desrespeito seus ministros. "Um dos erros de Chávez é fazer uma política de confrontação, como se estivesse constantemente em campanha eleitoral", diz Miquilena. E completa: "Seu autoritarismo não desaparece com a derrota no referendo, pois Chávez criou na Venezuela uma estrutura fraudulenta, com o controle total de todos os poderes da república. Só ficou a fachada democrática".

A tropa de choque chavista

Entre os grupos armados que aterrorizaram as passeatas estudantis contra a reforma constitucional, no mês passado, foram identificados membros dos Tupamaros. Trata-se de um grupo de guerrilha urbana de orientação maoísta inspirado no comando uruguaio de mesmo nome. Os Tupamaros ganharam influência como um bando de vigilância informal de uma favela de Caracas e, com a eleição de Chávez, em 1998, saíram das sombras depois de passar toda a década de 90 na clandestinidade. José Pinto Marrero, fundador do grupo que reúne 3 000 homens em todo o país, chegou a receber de Chávez o controle policial de um distrito de Caracas. O líder dos Tupamaros garante que já desistiu da luta armada. "Não é mais necessária, como prova o referendo: apesar de termos perdido, os 4 milhões de votos a favor da reforma demonstram que os venezuelanos já aceitam o atual processo socialista", diz Marrero, esquecendo-se de que muitos eleitores votaram pelo sim mais por simpatia ao presidente que por concordar com seus planos mirabolantes. Marrero garante que, mesmo sem o respaldo legal de uma Constituição, Chávez vai continuar a implantação de seu plano de poder vitalício. "Estamos aqui para defendê-lo, inclusive dos capitalistas infiltrados no governo", afirma Marrero, que há um mês sobreviveu a uma tentativa de assassinato cometida por outro grupo governista, o Carapaica. Ele levou cinco tiros, um deles no peito. São os chavistas disputando nacos do poder.

Nem os bispos podem reclamar

No fim do ano passado, quando Chávez foi reeleito para um mandato que só expira em 2013, o bispo Ramón Viloria, de Puerto Cabello, leu uma carta aberta da Conferência Episcopal Venezuelana (CEV) ao presidente, pedindo que anistiasse os presos políticos que há no país (são quase duas centenas). A resposta de Chávez foi que políticos presos não são presos políticos. A direção da CEV, da qual Viloria é o secretário-geral, é vítima constante da fúria verborrágica de Chávez. No mês passado, o coronel chamou os bispos de "vagabundos" e de "demônios", porque a CEV se opôs explicitamente à reforma constitucional. "Tratava-se de uma proposta moralmente inaceitável, que atentava contra princípios fundamentais, como o estado pluralista e os direitos individuais dos cidadãos", diz Viloria. "Quando Chávez nos atacou por criticarmos a reforma, estava manifestando sua vontade de impor o pensamento único neste país." O bispo não é muito otimista quanto à possibilidade de Chávez mudar sua postura em relação aos que discordam dele. "Ele não deu uma só demonstração de que pretende negociar com a oposição, depois de perder o referendo", diz o bispo.

Tem gente que não sabe perder

Vladimir Villegas acaba de deixar o posto de vice-ministro de Relações Exteriores do governo Chávez e já ocupou o cargo de embaixador no Brasil e no México, de onde teve de sair quase fugido depois que o coronel chamou o presidente Vicente Fox de "cachorrinho do império", em 2005. Villegas, como acontece com todos os membros da cúpula chavista, esmera-se em repetir o discurso de Chávez em todos os aspectos e detalhes. Dizer qualquer coisa fora do roteiro pré-aprovado pelo presidente é um risco. Para Villegas, não foi possível aprovar a reforma constitucional no referendo pelo seguinte motivo: "O povo não entendeu direito nossa proposta socialista, mas vamos tentar de novo", diz o chavista. "Afinal, não podemos esquecer que a Revolução Bolivariana é uma referência para movimentos sociais de toda a América Latina." Como os venezuelanos já opinaram nas urnas, algo que o chavismo custa a compreender, trata-se de uma referência fracassada.

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