Gaudêncio Torquato
Há nexo entre a derrota de Hugo Chávez, na Venezuela, no referendo sobre a reforma constitucional que lhe permitiria introduzir mudanças para consolidar seu “socialismo bolivariano” e a morte do terceiro mandato para o presidente Lula, conforme atestado de óbito conferido por recente pesquisa Datafolha, que registra 63% de brasileiros contrários à idéia? Há, sim, se colocarmos na planilha a questão do continuísmo. Chávez sonha com a idéia de se perpetuar no poder. Lula, apesar de rejeitar publicamente 12 anos de Presidência, aciona freqüentemente o inconsciente ao lembrar os 14 anos de François Mitterrand, na França, e os 11 anos de Margaret Thatcher, na Inglaterra. Já os petistas, por falta de quadros próprios, gostariam de esticar o mandato lulista. Como os dois governantes assumem uma “irmandade socialista”, pregam a “revolução das esquerdas” e se orgulham de ser no continente os maiores intérpretes das massas, convém prestarem atenção à lição que o povo acaba de lhes dar.
A lição é que o voto não é o único e exclusivo tijolo do edifício democrático. Lula tece loas ao companheiro por auscultar toda hora o povo venezuelano. Ora, sem a alternância de poder, outro valor fundamental do Estado democrático de Direito, o voto torna-se mero escudo para abrigar ditaduras. Hitler, lembramos, chegou ao poder pelo voto. Mas olhemos para os resultados das consultas nos dois países, um referendo e uma pesquisa de opinião pública. A “democracia plebiscitária” do caudilho virou um bumerangue. Era embalada por um sofisma e continha um engodo. O sofisma é que um governo pontilhado de referendos e plebiscitos cumpre à risca o lema de Lincoln: do povo, pelo povo e para o povo. Já o engodo é o passaporte para Chávez se eternizar no poder. O projeto petista - em hibernação - pretende dar a Lula a prerrogativa de convocar plebiscitos sobre temas diversos, incluindo mudança constitucional que permita reeleições continuadas do presidente.
Brasil e Venezuela exibem enormes disparidades, tanto no plano governativo quanto na moldura das condições sociais e econômicas, mas há um traço de união entre os dois países: a centralização política e a personalização do poder do hiperpresidencialismo. Tanto lá como cá, os mandatários praticam uma democracia delegativa, dentro da qual se consideram legitimados pelo voto para estabelecer, via mecanismos autoritários, decisões políticas. Os sinais dessa “democracia imperial” aparecem quando Chávez manda fechar a principal emissora de TV do país ou substitui abruptamente os membros do Judiciário, forçando sua submissão ao Executivo; ou quando Luiz Inácio usa e abusa das excepcionais medidas provisórias para a gestão de planos considerados comuns. A reação do povo a essa escalada autoritária é tênue e balizada por benefícios compensatórios. Na Venezuela, guardião de uma reserva petrolífera de 100 bilhões de barris, cuja cotação se aproxima dos US$ 100, o caudilho dá-se à aventura populista de multiplicar programas assistencialistas - que ele chama de missões -, alguns voltados para financiar a saúde, educação, habitação e comida barata para os mais pobres.
O rombo dos gastos públicos começa a mostrar rachaduras. A inflação beira os 18%, as importações falham, os investimentos externos escasseiam e o desabastecimento já provoca revolta. O instinto de sobrevivência grita alto e o coronel recebe o troco: 3 milhões de votos a menos que na última eleição. Parte dos 44% do eleitorado que não compareceu às urnas quis dizer “não” ao futuro nebuloso. E como reage o “espírito democrático” do caudilho? Com um termo chulo para a vitória da oposição. Por aqui, a ameaça inflacionária e a escassez de alimentos são cartas fora do baralho. A economia tem eixos estáveis. Lula, como o “democrata” Chávez, que tanto elogia, também cobriu a base da pirâmide com espesso cobertor assistencialista. E começa a freqüentar o meio da sociedade. Portanto, o presidente brasileiro, com folga de aprovação na opinião pública, poderia teoricamente reivindicar mandatos sucessivos. Mas o povo não quer isso, segundo a pesquisa que detonou a idéia do terceiro mandato.
Entre aprovar a administração de um governante e lhe conceder salvo-conduto para se perpetuar no poder, há enorme diferença. O continuísmo, na percepção social, é um jogo viciado, subordinado a uma estratégia egocêntrica, autoritária, voltada para locupletar grupos que se mantêm nos topos diretivos. Ademais, as sucessivas crises vividas pelo País nos últimos tempos, tendo como leitmotiv a corrupção, influenciam o sistema cognitivo e as decisões da coletividade, mesmo de contingentes marginalizados. No momento certo, brilha a luz do senso comum. É como se um grito saísse da garganta coletiva: “Não, isso não dá para aprovar, vamos dar um basta a esse estado de coisas.”
Resta aduzir que nas democracias contemporâneas o modelo das gestões e a conduta dos governantes são balizados pelo esquadro do povo, diferentemente dos tempos em que os lordes ingleses - nobreza e clero - procuravam dosar os projetos demagógicos que vinham da Câmara dos Comuns para agradar às massas. Hoje é o povo que começa a balancear o sistema de pesos e contrapesos (“checks and balances”). Projetos das cúpulas partidárias e das castas que se incrustam no poder precisam receber o endosso popular. Planos mirabolantes como os do caudilho Chávez e idéia extravagante como a da turma que pretende dar ao nosso presidente uma coroa de rei só passam com o crivo social. Nos Estados democráticos, o espaço para governantes demagógicos e autocráticos se estreita. Caudilhos camuflados de democratas não enganam o povo todo o tempo. O susto que Chávez acaba de tomar ecoará na América Latina. Evo Morales, na Bolívia, deverá mudar a forma truculenta que inspira a gestão. Rafael Correa, no Equador, deverá também assumir tom mais suave. E ao nosso Luiz Inácio resta conter as patrulhas, antes que sejam abatidas pela arma do voto popular.