“Senhor, guarda-me daquela
mania fatal de acreditar que é meu dever dizer algo a respeito
de tudo e em qualquer ocasião.”
“Senhor, não me atrevo a
reclamar uma memória melhor,
dê-me, porém, uma crescente
humildade e menos suscetibilidade quando a minha memória
esbarrar nas dos outros.”
Extraí essas duas preces ao Senhor de uma anônima Oração dos Velhos que recebi há pouco de uma alma piedosa e amiga. Reproduzo-as, em parte, imbuído de espírito natalino. Em parte, porque na semana passada assisti ao presidente Lula referir-se com aprovação à primeira parte da bela frase da conhecida canção de Raul Seixas, “prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, explicando não ter vergonha de ter mudado, e radicalmente, de opinião. No caso, sobre a CPMF.
O tema do animal humano como metamorfose ambulante é fascinante e se presta a várias leituras. Permitam mencionar algumas, pensando no que acontece hoje no Brasil, mesmo quando não parece.
A primeira lembrança que me veio à mente ao ouvir nosso presidente evocar Raul Seixas foi a famosa pergunta de Keynes: “Quando mudam as circunstâncias de forma significativa, eu mudo de opinião. Você o que faz?” Mas Keynes se referia à análise econômica, às expectativas sobre o futuro, às diferenças entre risco e incerteza e à necessidade de um constante reformular de expectativas à luz de novas informações. Não se pode, definitivamente, na prática dos mercados, ter velhas opiniões formadas sobre tudo. Muito pelo contrário.
Uma segunda lembrança vem naturalmente à mente de quem quer que se interesse pelo longo e tortuoso processo de reflexões e debates internos que levou às profundas metamorfoses, por exemplo, do Partido Trabalhista inglês ou do Partido Socialista chileno e ao abandono - consciente - de velhas opiniões formadas sobre suas visões do mundo e sobre seu papel, como partidos políticos, nas metamorfoses por que haviam passado, estavam passando e passariam seus respectivos países.
Terceira lembrança vem de Charles Darwin, que demonstrou de maneira convincente em sua Origem das Espécies que não foram as espécies de maior forca física as que sobreviveram, mas as que demonstraram maior capacidade de adaptação à sua circunstância e maior flexibilidade para mudar na longuíssima evolução que nos trouxe ao animal humano.
A quarta lembrança vem dos grandes textos sobre vaidade, de Isaías (“Ai de vós que sois sábios a vossos próprios olhos”) aos ensaios de Montaigne sobre o tema: “Ninguém está isento de dizer tolices. O mal está em dizê-las seriamente.” Mas o autor prossegue com fina ironia: “As minhas tolices escapam-me tão descuidadosamente quanto valem. No que fazem bem. Eu as abandonaria prontamente se delas resultasse o menor dano.”
Uma quinta lembrança evocada por Seixas/Lula me veio do dr. Samuel Johnson: “Não existe homem cuja imaginação, por vezes, não predomine sobre a razão. Não existe homem que seja capaz de regular a sua própria atenção exclusivamente pela vontade, e cujas idéias surjam e desapareçam segundo seu comando... todo forçar da imaginação sobre a razão expressa um certo grau de insanidade; porém é possível controlar e reprimir tal força, ela não é visível a terceiros, tampouco considerada uma depravação de faculdades mentais: só é declarada loucura quando se torna ingovernável e parece influenciar o discurso e a ação.”
A sexta e última lembrança que vem à mente sobre o tema é do velho Freud, que pega pesado em O Mal-Estar na Civilização, escrito em 1929-30. “Por várias razões, não tenho a menor intenção de expressar qualquer ponto de vista a respeito do valor da civilização humana. Tentei resistir à parcialidade entusiasmada que acredita ser a nossa civilização o bem mais precioso que possuímos... Minha imparcialidade torna-se, para mim, mais fácil, uma vez que sei pouco acerca desses assuntos, e só tenho certeza de um ponto: que os julgamentos de valores feitos pela humanidade são determinados pelo desejo de felicidade; em outras palavras, que tais julgamentos são tentativas de sustentar ilusões com argumentos.”
Qual a sua lembrança preferida, caro(a) leitor(a)? Não importa muito, de Isaías a Lula, passando por Raul Seixas, as observações acima são todas variações sobre o vasto tema das mudanças e metamorfoses que constituem a essência e a beleza da vida. Neste sentido, a preferência expressa por Seixas na primeira parte de sua frase é libertária, e diz respeito ao inalienável direito individual de realizar escolhas na vida.
Acerca das “velhas opiniões formadas sobre tudo”, a meu ver, é importante não confundir opiniões com princípios e valores que devem caracterizar uma sociedade mais decente. Uma coisa é jogar fora velhas opiniões ultrapassadas pelos fatos, circunstâncias e pelas próprias mudanças do mundo. A outra é abandonar princípios e valores porque “velhos”.
É conhecido o caso de um político (estrangeiro) que rompeu um importante acordo sobre princípios com o qual havia assumido firme compromisso público. Perguntado se não se considerava um homem sem princípios, respondeu: “É claro que sou um homem de princípios, e o primeiro deles é a flexibilidade” (para desconsiderar os demais).
Estar aberto a mudanças e metamorfoses, bem como deixar de lado velhas opiniões ultrapassadas pelos fatos do mundo são coisas positivas. Mas jogar fora princípios e valores com as velhas opiniões é como jogar fora o bebê com a água suja do banho. E não devemos esquecer que velhas opiniões formadas sobre tudo podem ser substituídas por opiniões melhores ou por opiniões piores que as antigas. Como por vezes, infelizmente, acontece. Há riscos em ser uma metamorfose excessivamente ambulante.
Por isso, termino relembrando as duas preces ao Senhor que abrem este artigo e desejando a todos um feliz Natal e um bom ano-novo.