O fato de o coronel Hugo Chávez ter aceito formalmente o resultado do referendo de domingo passado está sendo apresentado como prova das convicções democráticas do caudilho. Chávez não era um democrata quando tentou derrubar o governo constitucional pela força; não se converteu à democracia nesses quase nove anos em que se mantém no poder pela via eleitoral - e a prova disso são os extraordinários poderes que já acumulava, graças à Lei Habilitante, antes de lançar o projeto de constituição que o eternizaria na presidência com poderes de que poucos ditadores, ao longo da história, dispuseram. E entre esses poucos estão Hitler e Mussolini que, como ele, chegaram ao poder pelo voto popular para impor a seus países um regime totalitário.
Agora, quando o voto popular deu a vitória a seus adversários, Chávez exibe novamente a sua verdadeira vocação. Obrigado a reconhecer a vitória dos seus opositores, o caudilho reinicia sua luta pela implantação da ditadura constitucional. Isso ficou cristalinamente claro na quarta-feira, quando interrompeu inesperadamente uma entrevista coletiva convocada por seu ministro da Defesa, general Gustavo Rangel Briceño, para negar que o alto comando militar tivesse obrigado o presidente a reconhecer publicamente o resultado das urnas - rumor divulgado pela imprensa venezuelana e repercutido pela CNN.
O general garante que isso não aconteceu e Hugo Chávez afirma que teria demitido o general que o pressionasse. Mas essa versão dos acontecimentos da noite de domingo ajuda a explicar por que o Conselho Nacional atrasou em mais de cinco horas o anúncio dos resultados da votação eletrônica, e só o fez depois de Chávez reconhecer a derrota pela televisão.
Ao interromper a entrevista, abruptamente, Chávez mostrou a sua verdadeira face. Com grosseria inaudita - mesmo para os padrões dele -, advertiu a oposição: “Saibam administrar sua vitória, mas já a estão enchendo de merda. É uma vitória de merda!” Com esse linguajar fescenino, o caudilho revelou o respeito que tem pelos milhões de venezuelanos - a maioria - que votaram contra a sua constituição.
Também revelou que, no domingo, mobilizou tropas para intervir em dois Estados governados por oposicionistas - onde poderia haver desordens com o anúncio de sua vitória (que não houve) - e para “tomar fisicamente” emissoras de televisão que anunciassem resultados não oficiais. E ameaçou: “Não é que estávamos prontos; estamos prontos (para a intervenção). Não se equivoquem!”
Bravatas de um coronel desequilibrado que há nove anos não conhecia limites para seus poderes, mas que devem ser levadas a sério, como mostra o que disse a seguir: “Preparem-se”, avisou ele, “porque virá uma nova ofensiva com a proposta de reforma, esta (a derrotada) ou transformada ou simplificada.” E anunciou que começará a coleta de assinaturas para a apresentação à Assembléia Nacional de um projeto de reforma constitucional de iniciativa popular.
Em outras palavras, anunciou que não acatou o resultado das urnas e insistirá no seu projeto pessoal desrespeitando a Constituição vigente - por ele mesmo elaborada em 1999 -, que proíbe que proposta derrotada volte a ser apreciada na mesma legislatura. Minutos antes de Chávez fazer esse anúncio, seu ministro da Defesa havia afirmado que o resultado do referendo mostrava, inequivocamente, que o povo queria a Constituição vigente: “Aqueles que não a aprovaram em 1999 a defenderam e aprovaram no 2 de dezembro.”
O coronel golpista esquece que o povo venezuelano, depois de experimentar sucessivas e ruinosas ditaduras desde a independência, teve 50 anos de governos democráticos. Nesse meio século, os valores democráticos e o apreço pela liberdade se enraizaram na população, como ficou surpreendentemente demonstrado no domingo. A Venezuela se tornou um país plural, que não admite a imposição do pensamento único “bolivariano” nem aceita que um caudilho personifique o Estado, levando de roldão os direitos individuais e políticos duramente conquistados.
Na quinta-feira, depois de todos esses destemperos, pela primeira vez Chávez anunciou que só governará até 2013.
Será esse um sinal de que as Forças Armadas estão mesmo dispostas a não permitir a consumação do seu golpe? Seja como for, se Chávez persistir em seu projeto megalomaníaco, levará a Venezuela ao caos.