Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 01, 2007

Os heróis


Miguel Reale Júnior


Uma nação se forja graças à sua memória. Ninguém melhor do que os franceses para cultuar a sua História, bem apresentada na Biblioteca François Mitterrand, em Paris, com a exposição sobre os heróis, denominada De Aquiles a Zidane. Curioso o título da mostra, a indicar o surgimento de um novo modelo de herói. Na exposição se percorre uma longa trajetória, que vai dos heróis gregos, como Aquiles, um bravo, corajoso, impiedoso combatente, que preferiu a vida breve gloriosa a uma vida longa obscurecida, até as figuras de gibi e televisão, como Superman e Homem-Aranha, para finalizar com uma celebridade do contagiante futebol. Dos pés de Aquiles, seu único ponto fraco, aos pés de Zidane, seu ponto forte.

Sendo o herói de hoje efêmero, que tem seu rápido momento de glória registrado pela mídia para ser logo esquecido, teve-se de recorrer, para marcar o herói dos tempos atuais, às figuras imaginárias do Superman, do Homem-Aranha, consagradas nas revistas e nas telas de cinema ou televisão. Como diz Michela Marzano sobre a morte espetáculo, "as fronteiras entre a ficção e a realidade são cada vez mais vagas". Os heróis de hoje não são de carne e osso, são super-heróis indestrutíveis de um espetáculo de divertimento, mas que podem confundir-se com o real, como fez o garoto de Santa Catarina que, vestido de Homem-Aranha, penetrou nas chamas e retirou a menininha do berço incendiado.

Mas a mostra rememora os heróis franceses a serem cultuados e seguidos. Os heróis são símbolos nacionais ou religiosos cujos prodígios se caracterizam pela bravura, pela temeridade, pela renúncia, pelo idealismo. Põem acima do próprio instinto de conservação a busca do bem coletivo. O herói ressalta-se por sua vontade de vencer, pela força do caráter, pela grandeza de alma, pela elevada virtude, que o faz enfrentar sobranceiramente a morte.

São lembrados, dentre tantos outros, Le Peletier de Saint-Fargeau, Joseph Barra, Jean Moulin, homens valiosos que constituem modelos de heroísmo a compor o imaginário da busca de excelência.

Le Peletier de Saint-Fargeau, integrante dos Estados Gerais como representante da nobreza, uniu-se ao Terceiro Estado em favor da supressão dos privilégios. Elaborou o Código Penal de 1791 e o plano nacional de educação, propondo o ensino obrigatório gratuito. Na Convenção, votou pela condenação de Luís XVI. Logo em seguida, num restaurante do Palais Royal, foi esfaqueado por um monarquista. Seu corpo foi, então, o primeiro a ser levado ao Panthéon. Joseph Barra, um rapazinho de 14 anos, alistou-se no exército republicano para lutar pela revolução contra os monarquistas da La Vendée, departamento do centro-oeste da França. Vítima de uma emboscada, ao morrer sob saraivada de tiros, gritou: "Viva a República!" Jean Moulin, prefeito de Chartres durante a 2ª Guerra Mundial, líder da resistência francesa, foi preso com outros colegas resistentes em reunião clandestina denunciada por um traidor. Torturado, veio a falecer ao ser transportado para a Alemanha.

Lembrei o exemplo de mártires que, sem desprezo pela morte, a enfrentaram com estoicismo, alimentados por suas crenças em luta corajosa para a eliminação da injustiça e a transformação da sociedade em benefício de todos. Não foram estes homens combatentes de grandes feitos militares, portadores de estratagemas ou forças invencíveis. Foram pessoas comuns, que tiveram destino diverso das demais por aceitarem enfrentar os perigos em nome de uma causa, com a virtude da renúncia aos próprios interesses. São heróis, não super-heróis ou celebridades, como os "heróis" de hoje.

Nós, brasileiros, também temos exemplos de heróis de carne e osso, em nossa História, que morreram na luta por suas crenças. Lembro três: Zumbi, Frei Caneca e Marçal de Souza Tupã-Y.

Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, local da resistência negra contra a escravidão, defendeu a abolição da escravatura e comandou a defesa do reduto dos Palmares contra as forças oficiais comandadas por Domingos Jorge Velho. Em 1695, cercado, resistiu 22 dias, mas o quilombo veio a ser destruído. Ferido, Zumbi foi preso, morto e degolado em 20 de novembro de 1695, hoje data nacional da Consciência Negra. Frei Caneca, em 1817, liderou a Revolução de Pernambuco, cujo fim era separar o Brasil da Coroa Portuguesa. Preso, cumpriu pena de quatro anos de reclusão. Reagiu depois ao fechamento da Assembléia Constituinte em 1823 por dom Pedro I. Articulou, então, a Confederação do Equador, revolta liberal de diversos Estados do Nordeste. A Confederação foi atacada por forças militares durante três meses. Apesar do apoio popular, terminou por haver rendição. Condenado à forca, Frei Caneca teve uma última amostra da adoração do seu povo: durante dias ninguém aceitou ser o algoz do frade. Frei Caneca foi, então, fuzilado por um pelotão. Marçal de Souza Tupã-Y lutou, como índio guarani, pela demarcação de terras indígenas. Ao papa João Paulo, II, em 1980, denunciou as atrocidades dos brancos contra os índios. Incomodou proprietários de terras e foi assassinado ao lado da mulher, grávida, em novembro de 1983.

Malgrado existam estes exemplos, dentre outros, assusta a resposta colhida em pesquisa feita, por internet, entre 60 mil brasileiros, a quem se indagou qual a figura mais importante de nossa História. A resposta majoritária foi, num leque de opções, o próprio povo brasileiro. Tal indica que deixamos de ter modelos, valores a serem perseguidos. Perdeu-se a memória.

Quando um povo elege a si mesmo como herói nacional, orgulha-se da esperteza em superar obstáculos por sua conta, a ponto de nada ter a respeitar no passado que seja digno de ser cultuado. Um povo que se intitula seu próprio herói sofre a falta de referência no processo histórico. Está à deriva. Sem História e sem modelos a seguir, o brasileiro torna-se, então, presa fácil de demagogos de plantão.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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