Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Merval Pereira - A hora da reforma




O Globo
6/12/2007

A metamorfose do presidente Lula a respeito da CPMF tem o mesmo teor de outras mudanças de comportamento depois que chegou à Presidência da República. Reflete um pragmatismo político que, se em alguns casos são alterações positivas, como a compreensão de que só o equilíbrio fiscal pode levar o país a um crescimento sustentado, em outros são apenas espertezas de curto prazo. Quando o PT era contra a CPMF, e Lula ia até Brasília pressionar os parlamentares do partido para votarem contra o tributo, tinha pelo menos um discurso positivo que escondia o puro boicote à política econômica do governo tucano. O senador Aloizio Mercadante, por exemplo, que sempre representou a visão econômica petista, se declarava contra a CPMF "na defesa de uma reforma tributária abrangente, inclusive porque esse governo já tem a carga tributária mais elevada da história recente do país".

Muito justamente, pregava o então deputado federal pelo PT: "Não adianta continuar criando impostos num cenário recessivo, porque a receita não aumenta. O país precisa de uma reforma tributária e fiscal abrangente e não de mais impostos". Pois agora, mesmo se considerando uma "metamorfose ambulante", o que justifica qualquer mudança de posição, Lula tem uma argumentação puramente demagógica para a prorrogação do imposto: segundo ele, pobre não paga CPMF, e seu fim prejudicaria os programas sociais do governo.

Vários estudos, no entanto, mostram que a incidência dos impostos indiretos, como a CPMF, recai mais sobre os pobres. Apenas 9,5% da arrecadação da CPMF vem de pessoas físicas, o restante sai da movimentação das empresas, o que significa que na maioria das vezes o tributo é repassado para o preço final do produto.

O nosso problema continua sendo mesmo a falta de legislação tributária que desconcentre a renda. O caminho da negociação em torno de uma reforma tributária, que começou a ser trilhado com o PSDB, era o correto, mas foi abandonado pelo governo, que adiou sem data a apresentação de sua proposta.

No trabalho, "A Incidência Final dos Impostos Indiretos no Brasil", os professores da Universidade Federal de Pernambuco Rozane Bezerra de Siqueira, José Ricardo Nogueira e Evaldo Santana de Souza mostram que "o efeito final do sistema de impostos indiretos no Brasil sobre os preços para o consumidor está longe de ser transparente", e o governo de fato tributa pesadamente bens que tenciona isentar ou tributar apenas levemente.

As alíquotas efetivas sobre bens que representam grande parcela no orçamento das famílias de baixa renda, como alimentos e vestuário, revelaram-se na pesquisa ainda mais altas do que as nominais implícitas nas receitas arrecadadas. A alíquota efetiva média sobre as famílias é de 16,2% para o total dos impostos indiretos, e de 10,7% para o ICMS. No entanto, no seu dia-a-dia, as famílias se deparam com alíquotas bastante superiores a essas médias.

O estudo mostra que sobre produtos vegetais beneficiados, incluindo arroz e farinha de trigo, incide uma alíquota efetiva média de 24,0%, enquanto para outros produtos alimentares, inclusive bebidas, a alíquota efetiva média é de 25,5%. Pode-se constatar, dizem os autores do trabalho, que a alíquota efetiva média sobre artigos do vestuário é de 17,5% e a incidente sobre fabricação de calçados é de 27,2%.

Isso também ocorre, por exemplo, com as exportações, que, apesar de contarem com uma política explícita de desoneração, são implicitamente tributadas devido aos impostos cobrados sobre insumos usados na produção de bens e serviços exportados.

Os autores lembram que há outros impostos que oneram a produção e o consumo e que não estão incluídos na matriz de insumo-produto, como, por exemplo, a contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins), a contribuição para o programa de integração social (PIS) e a contribuição provisória sobre movimentações financeiras (CPMF).

Outro estudo, realizado por dois dos professores pernambucanos - José Ricardo Nogueira e Rozane Bezerra de Siqueira -- em conjunto com Herwig Immervoll, e Horacio Levy, ambos da Universidade de Essex, Colchester, e Cathal O" Donoghue, da Universidade Nacional da Irlanda, analisa o impacto do sistema tributário brasileiro no combate à desigualdade e à pobreza.

Ele mostra que, embora a carga tributária de 35% do PIB permita ao governo gastar mais de 2/3 do arrecadado em programas sociais, o que seria comparável com a média dos países desenvolvidos e muito acima da média latino-americana, a redução das disparidades no Brasil é muito menor do que a média dos países da OCDE, a organização para cooperação e desenvolvimento econômico que reúne os países desenvolvidos.

A parcela das pensões em relação à renda disponível é muito maior no Brasil que nos países europeus. O Brasil gasta mais com pensões, apesar de ser relativamente jovem. E os gastos com pensões acabam concentrados nos de renda mais alta, mostra o estudo.

Dada essa diferença, dizem os estudiosos, não é surpreendente que os efeitos equalizadores da política de tributação seja menor no Brasil do que na Europa. O país europeu com o menor grau de redistribuição de maneira geral é a Itália, mas os benefícios não ligados à pensões reduzem o índice de Gini - a medida da desigualdade - duas vezes e meia mais do que no Brasil. Enquanto no Brasil os benefícios não ligados às pensões reduzem a desigualdade em cerca de 10%, na maioria dos países da Comunidade Européia essa redução está na média de 60%.

No caso da CPMF, Lula e o PT estavam certos quando pediam uma reforma tributária profunda no lugar do tributo. Só que não era para valer.


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