Celso Lafer
A política externa é uma política pública. Interessa a todos, pois trata da gestão dos interesses coletivos de uma nação no mundo. Cuida dos meios pelos quais um país se relaciona com os outros, lidando com os riscos dos conflitos, as oportunidades e os desafios econômicos e levando em conta os valores, ou seja, as afinidades e as discrepâncias políticas e culturais.
No trato da matéria é importante lembrar que o processo de globalização intensifica a internalização das realidades do mundo na vida dos países e das sociedades. Por isso, por exemplo, tem impacto na política brasileira o resultado negativo para Hugo Chávez de, por meio de consulta popular, consolidar na Venezuela uma autocracia eletiva.
Na definição da inserção internacional de um país pesam fatores como a localização geográfica, a demografia, a escala, os recursos. A conduta externa de um Estado não é, no entanto, determinada apenas pela sociologia das correlações de poder. Como ensinava Raymond Aron, os objetivos da política externa são estabelecidos em parte pela natureza de um regime político e sua ideologia. Daí a importância das variáveis da política interna para a compreensão da política externa dos Estados. É por esta razão que o princípio da não-intervenção não pressupõe desconhecimento das realidades políticas das outras nações, como as de governabilidade democrática de países da América do Sul (por exemplo, Bolívia e Equador).
Observo, assim, que a visão do presidente Bush, que atribui um papel regenerador no mundo ao poderio norte-americano, é um dos dados da tensão de hegemonia que provocou no sistema internacional. A visão do presidente do Irã de que ao país cabe exercer um poder redentor do islamismo no mundo ajuda na explicação de por que a nuclearização iraniana vem levando a uma tensão internacional que não comporta paralelo com a constelação diplomática que acabou propiciando a aceitação do fato da nuclearização militar da Índia. A visão do presidente Chávez de um poder bolivariano libertador dos grilhões da estratificação mundial encarnada nos EUA explica por que a atual concepção da Venezuela de integração sul-americana é essencialmente política. Nada tem que ver com os objetivos de cooperação aprofundada que levaram ao Mercosul ou com o sentido de direção dado à reunião de 2000, em Brasília, dos presidentes da América do Sul.
Na definição de metas de política externa é relevante identificar com sentido de prioridade o que um país realmente precisa obter no plano internacional para atender a suas necessidades internas, avaliando corretamente quais são, num determinado momento, suas possibilidades externas para alcançar segurança, desenvolvimento e bem-estar, prestígio e afirmar visões do funcionamento do sistema internacional. No processo de gestão da política externa é preciso evitar dois riscos opostos: o de superestimar-se e o de subestimar-se.
O superestimar-se deságua na inconseqüência e, por vezes, na insensatez. Foi o caso da Argentina do regime militar na aventura da Guerra das Malvinas. O subestimar-se leva à inércia e ao conformismo. Foi o caso do apaziguamento com o qual a Inglaterra de Chamberlain fortaleceu o ímpeto bélico da Alemanha nazista de Hitler. O apaziguamento, sustentado por afinidades partidárias e ideológicas do atual governo, tem caracterizado a conduta diplomática do Brasil no trato das relações com a Bolívia de Evo Morales.
Na discussão do tema dos dois riscos é analiticamente útil a diferenciação entre relevância, protagonismo e liderança, proposta por Felix Peña. A relevância diz respeito ao potencial que tem um país para incidir no encaminhamento de um tema significativo da agenda internacional. A relevância não se traduz necessariamente em protagonismo, que é uma presença ativa na vida internacional. Esta, por sua vez, não redunda, por si só, em liderança, que pressupõe uma visão estratégica e iniciativas aceitáveis para outros países, ou seja, a capacidade de identificar o potencial de interesses compartilhados.
Exemplifico. O Brasil, por suas características, é relevante no campo do meio ambiente e da mudança climática. Não tem sido nem protagônico nem exercido liderança nesta matéria, como a recente conferência sobre o futuro do Protocolo de Kyoto, em Bali, indica. O Brasil tem sido protagônico no empenho em buscar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e em promover a conclusão da Rodada Doha da OMC. Não logrou, até agora, comprovar a sua relevância no campo da segurança, para obter o almejado assento permanente. O protagonismo no âmbito da OMC não redundou, até o presente momento, numa liderança apta a conciliar os interesses nacionais e os do G-20 com os interesses dos demais numa visão estratégica apta a levar a bom termo a Rodada Doha.
Em poucas palavras, o protagonismo diplomático do governo Lula neste dois temas centrais da sua política externa no correr de 2003-2007 careceram de uma dose apropriada de relevância e liderança. O mesmo vem ocorrendo no âmbito regional sul-americano, outro tema central da Presidência Lula. Neste âmbito o Brasil é relevante, tem tido protagonismo, mas não logrou uma liderança de cunho estratégico capaz, nas difíceis condições atuais, de construir uma noção de interesse sul-americano compatível com o interesse nacional. O exemplo mais recente é a criação, ora em curso, do Banco do Sul, que articula uma visão venezuelana para a instituição.
Em síntese: uma das graves falhas da diplomacia da Presidência Lula é a inadequação e falta de sincronia com que os seus operadores manejam relevância, protagonismo e liderança.