Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 16, 2007

Gaudêncio Torquato Bilhetes provisórios

Na batalha da CPMF voaram estilhaços para todos os lados, mas ninguém saiu ferido de morte. O governo viu esfumaçar-se um cofre com R$ 40 bilhões, mas divisa a possibilidade de ressarcir o prejuízo abrindo outros veios. A oposição dá-se ao luxo de gritar vitória, apesar das feridas em seus guerrilheiros, principalmente nas hostes tucanas. O Senado limpa da pauta a temática que conflagrou os ânimos de todos, mas se depara com o desafio de resgatar a imagem institucional, bastante arranhada pelos eventos que culminaram com a renúncia de Renan Calheiros. O comandante dos exércitos aliados, Luiz Inácio, lutou até o fim com a arma da barganha, mas não conseguiu evitar a mais acachapante derrota do governo, que já se prenunciara, por conta da arrogância com que tratou do assunto nas últimas semanas.

Do episódio, restam indagações, observações e lições que traduzem de maneira acurada o estado atual da política e a visão dos governantes. A mais recorrente é: a queda da CPMF implicará desarrumação no processo de acumulação de forças ao qual se dedica o presidente da República? E, na cola da questão anterior, as oposições auferirão lucros com a vitória alcançada? Para ambas as perguntas a resposta é não. Cofres federais abarrotados, perspectivas de expansão de receitas tributárias e múltiplas alternativas que se apresentam para corte de gastos garantem férias prolongadas à imagem do governo, que acaba de registrar o índice de 51% na avaliação de ótimo e bom em pesquisa do Ibope. Mais: as insinuações feitas pelo presidente de que as oposições poderiam tirar o prato de comida da boca dos pobres - caso a CPMF fosse extinta - sinalizam o recrudescimento da parolagem lulista. Preparemos os ouvidos para um longo festival de truísmos, tautologias, lugares-comuns, frases melífluas, slogans e refrãos surrados na arrumação do filme do mocinho enfrentando bandidos.

O adeus (será isso realmente?) à CPMF deixa alguns bilhetes de lembrança. No primeiro, a observação: até que enfim, o provisório deixou de ser permanente. Como se sabe, tudo começou em 1993, quando se criou o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira, com alíquota de 0,25%. Suspenso por uma ação direta de inconstitucionalidade, voltou a ser cobrado em 1994 e em 1996 virou a CPMF, com alíquota de 0,2%, para financiar a saúde, graças ao prestígio do cardiologista Adib Jatene. Em 2000 subiu para 0,38%. Em 1999 passou a financiar também a Previdência Social e em 2005, o Fundo de Combate à Pobreza. Pois bem, sua extinção não tirará nenhuma bolsa dos 11,5 milhões de famílias que dormem sob o cobertor assistencialista do governo. A última cartada de Lula acenava com a idéia de transferir para a área da saúde todos os recursos da CPMF, na comprovação de que o governo sabe de onde buscar dinheiro para agradar à sua base. É até possível que falte milho na roça política, com corte nos R$ 4,7 bilhões em emendas individuais de deputados e senadores no Orçamento de 2008. Jamais, porém, escasseará milho na plantação das margens sociais. Se o diabo mora nos detalhes e é amigo de Lula, está escondidinho no vasto interior do território.

O segundo bilhete conta que o ônus causado pela CPMF pesava mais sobre o bolso dos pobres. Para quem ganha até dois salários mínimos a tungada chegava a 2,19%, enquanto era apenas de 0,96% para ganhos acima de 30 salários. E por que os pobres nunca chiaram? Porque a simulação e a hipocrisia encobrem o cofre do Tio Patinhas. E, ainda, porque o feijão barato não encolhe o bolso dos pobres. Os carentes não sentem a mordida do Leão porque, em termos absolutos, o dinheirinho surrupiado pela CPMF nem é muito notado. Na planilha aritmética, porém, as disparidades emergem. Ou seja, a estabilidade da economia, sob inflação controlada, esmaece a percepção dos pobres. No inventário do provisório tributo que incidia em cascata, há também um bilhete garantindo que a saúde não irá para a UTI. O governo é um arquipélago povoado de ilhas tributárias. Só de janeiro a outubro deste ano, colheu R$ 57,68 bilhões do Imposto de Renda Pessoa Jurídica, quase 19% mais que a arrecadação no mesmo período do ano passado. Poderá, ainda, aumentar a alíquota do imposto pago pelos bancos. E já disse que usará a faca na proposta de política industrial, diminuindo as proporções da desoneração da folha de salários. Quer mais dinheiro? Basta segurar a contratação dos 60 mil servidores que prometeu fazer no próximo ano.

A saúde terá garantidos recursos para se recuperar. Chegamos, agora, à leitura do bilhete político. Ali está escrito: a CPMF era uma senhora eleitora de milhões de votos. Lula tirava dela um imenso bocado e o distribuía às massas. Governadores e prefeitos também queriam seu quinhão, porque as sobras federais fazem um banquete nas mesas mendicantes de Estados e municípios. José Serra (SP) e Aécio Neves (MG), governantes dos dois maiores colégios eleitorais do País, até cantaram alto para que os tucanos senadores dançassem a música. Como outros governantes, perderam e não terão tantas fontes quanto Lula para fazer jorrar água na plantação social. Conseguiram apenas rachar o tucanato. E Lula continuará a imperar, apesar de constatar que, no Brasil, nem sempre o superior anula o inferior. Nem adiantou usar o jeitão hipócrita do crocodilo, o bicho que, chorando, atrai a presa para devorá-la.

Vale registrar, ainda, que a dimensão política do debate comprimiu a base técnica de argumentação. O conceito de conquistar o poder pelo poder corroeu o estoque de racionalidade necessário para avaliar aspectos positivos e negativos da prorrogação da CPMF. Por fim, uma lembrança aos incautos: o Brasil é um eterno recomeço. Quer dizer, o primeiro bilhete - o provisório deixou de ser permanente - é contrariado por este último, onde se lê que, no próximo ano, o governo poderá ressuscitar a CPMF, batizando-a com outro nome. Além da bocarra do Leão, poderemos ter a cabeça da Medusa.

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