As grandes questões
A aceitação, por parte do governo venezuelano, da derrota no referendo que validaria as reformas constitucionais que dariam a Hugo Chávez poderes excepcionais, tornando-o virtualmente um ditador aprovado pelas urnas, passou a ser uma referência importante na discussão sobre se a Venezuela ainda é ou não uma democracia. Tomando por base dois dos mais importantes estudos acadêmicos que buscam definir o que é uma democracia, o cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, classifica a Venezuela como uma semidemocracia, classificação que também os autores do estudo, Mainwaring, Brinks e Pérez-Liñán, atribuem ao regime venezuelano. "Classificando Regimes Políticos na América Latina, 19451999", divide os regimes políticos entre democracia, semidemocracia e autoritarismo.
Outro estudo, do livro "Democracia e Desenvolvimento: Instituições políticas e bemestar no mundo, 1950-1990", de autoria de Adam Przeworski, Michael E. Alvarez, José Antonio Cheibub e Fernando Limongi, opta por uma contraposição entre democracia e ditadura, sem levar em conta as possíveis nuances.
O professor da USP Fernando Limongi, um dos autores, ressalta que a classificação "não comporta gradações como semidemocrático e coisas assim. Democracia, para usar uma fórmula famosa no país, é como gravidez". O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, usou em um trabalho sobre a inclusão da Venezuela no Mercosul os dois estudos para definir se "é ou não a Venezuela bolivariana uma democracia".
Segundo os critérios minimalistas do estudo que divide os países em democracias ou ditaduras, sem nuances, em primeiro lugar, lembra Amorim Neto, Chávez sempre foi eleito. Porém, os autores estipulam que a legislatura deve ser eleita, e que deve haver mais de um partido.
A atual legislatura venezuelana foi eleita no final de 2005, mas não possui nenhum partido de oposição. Mas isso não é culpa de Chávez, ressalta Amorim Neto, "pois os partidos venezuelanos, equivocadamente, decidiram boicotar o pleito".
Por último, os autores afirmam que, se os titulares do poder fecham inconstitucionalmente a legislatura e refazem as regras a seu favor, então, o regime é ditadura. Chávez não fechou a legislatura, ressalta Amorim Neto, "conquanto faça e refaça as regras do jogo a seu favor". Ou seja, por esses critérios, a Venezuela ainda é uma democracia, diz o cientista político da FGV.
Fernando Limongi, da USP, um dos autores desse estudo, lembra que uma das definições de democracia utilizada por eles é o regime em que os perdedores passam o poder para os que vencem as eleições "Ainda não sabemos se isto vai ou não correr na Venezuela", adverte Limongi.
Octavio Amorim Neto analisa então os requisitos exigidos pelo segundo estudo, respondendo às questões colocadas pelos autores: — Há queixas sistemáticas de fraude, manipulação ou repressão na escolha do Executivo e do Legislativo? Ou, conquanto haja queixas, ainda verifica-se algum grau de incerteza eleitoral? Resposta: Há queixas, mas parece ainda haver um resíduo de incerteza eleitoral na Venezuela. Ponto para Chávez.
— Há violações graves ou parciais do direito de voto? Resposta: A oposição venezuelana alega que sim.
Mas as organizações internacionais certificaram as últimas eleições no país. Ponto para Chávez.
— Há violações graves ou parciais das liberdades civis? Resposta: A não renovação da concessão da RCTV é prova clara de que, sim, há, pelo menos, violações parciais.
— Há violações graves ou parciais do exercício do poder pelos representantes eleitos? Resposta: Não.
Por esses critérios, diz Amorim Neto, a Venezuela é, no máximo, uma semi-democracia.
Como nuances são fundamentais para avaliar a situação atual da Venezuela, a classificação mais abrangente é a preferível, diz ele, para quem "enquanto o parlamento não for fechado, a imprensa de oposição continuar a existir e as eleições não forem fraudulentas, o regime venezuelano deve continuar sendo denominado de semidemocrático, apesar da agressividade verbal chocante de Chávez".
O professor Aníbal PérezLiñán, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, um dos autores desse outro estudo, reafirma a convicção de que a Venezuela é uma semi-democracia, o que significa, na sua análise: 1) A Venezuela tem um regime "competitivo" que permite um considerável grau de liberdade de expressão, tem eleições limpas. A transparência das eleições foi questionada pela oposição no passado, mas o resultado do referendo constitucional mostra que não há fraude sistemática na Venezuela.
2) Ao mesmo tempo, as ambições hegemônicas do governo impedem de classificar a Venezuela como uma democracia plena. O governo fez um esforço deliberado para ganhar o controle político de todas as instituições (o poder judiciário, o tribunal eleitoral, etc.) e utiliza os recursos do estado com fins partidários de forma aberta.
O discurso revolucionário funciona como desculpa permanente para confundir os recursos do estado com os do partido de governo.
Estes problemas da democracia, para Anibal Pérez-Liñán, foram agudizados pela oposição, que preferiu utilizar uma estratégia de conspiração no golpe de 2002 e na greve petroleira de 2002/3 e deslegitimação, ao não participar das últimas eleições legislativas.
Todo esse quadro está mudando, analisa Pérez-Liñán, mas tudo sugere que o problema de fundo afeta a classe política venezuelana, e não somente o chavismo. As soluções de longo prazo requerem una revalorização do consenso político e do pluralismo em toda a sociedade, não somente no partido do governo.
Entrevista:O Estado inteligente
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