Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 08, 2007

Merval Pereira O que é, o que é?

A definição do que seja um regime democrático é uma das tarefas mais difíceis da ciência política na atualidade, e diversos trabalhos acadêmicos se dedicam a tentar sistematizar as características essenciais da democracia. Nos últimos dias, tivemos dois casos exemplares de como é intrincado o quadro político moderno, com duas eleições explicitando faces distintas dos governos da Venezuela e da Rússia. Como salientou ironicamente o historiador Kenneth Maxwell, diretor do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos da Universidade Harvard, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, até recentemente considerado um aliado ocidental e um “homem confiável” para Bush, venceu as eleições com fraude, enquanto o ditador potencial Hugo Chávez perdeu o referendo que lhe daria amplos poderes, e acatou democraticamente seu resultado, apesar de alguns arroubos retóricos de baixo calão.

O presidente da Rússia tem idéias muito próprias sobre o que seja democracia.
Depois da tragédia da escola de Beslam, tomada em 2004 por separatistas chechenos, quando a repressão provocou a morte de mais de 300 pessoas, a maioria crianças, Putin disse que a democracia é um regime que resulta em instabilidade.
Recentemente, ele se classificou como “o único” dirigente democrático do mundo.
É sintomático que seu partido tenha vencido as eleições na Chechênia com mais de 95% dos votos, uma vitória eleitoral para ditador nenhum colocar defeito.

O hiperpresidencialismo, regime político caracterizado pelo excesso de poderes concedido pelo Congresso ao Executivo, é um fenômeno que está se alastrando e é a característica do sistema de governo tanto da Venezuela quanto da Rússia.

Octavio Amorim Neto, cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio, um especialista no assunto diz que o hiperpresidencialismo pode levar à deterioração da democracia, ou até mesmo destrui-la.

No caso da Rússia, o hiperpresidencialismo e o colapso da democracia estão intimamente associados, mas o problema central russo, para Amorim Neto, é a fraude completa das últimas eleições.

No caso da Venezuela, ele ressalta que, além de as eleições não serem fraudulentas, o problema do hiperpresidencialismo foi minorado com a rejeição da reeleição ilimitada no domingo passado.

No Brasil, a Presidência é fortíssima, mas não há ameaça séria à democracia, exemplifica. Octavio Amorim Neto diz que convém lembrar que nunca houve um regime realmente livre na Rússia, enquanto a Venezuela teve uma importante experiência democrática entre 1959 e 1998.

Segundo os professores de Harvard Timothy Colton e Cindy Skach, podemos aprender com o caso da Rússia que um país em processo de democratização, se não é capaz de construir maiorias legislativas legítimas e de ter seu presidente integrado a um sistema partidário institucionalizado, o Executivo pode se aproveitar dessa fragmentação para criar uma maioria circunstancial que favoreça a aprovação de sistemas autoritários.

Foi o caso da Rússia na Constituição de 1993, que deu superpoderes a Yeltsin, situação que foi exacerbada por Putin a partir de 2000, que, negociando com a Duma (Congresso), levou a Rússia a “direções autoritárias”, segundo Colton e Skach. Ou o da Constituinte de Chávez em 1998, que iniciou todo o processo de concentrar no Executivo os poderes do Estado, que culminaria com o referendo para aprovação da reforma constitucional que redefinia o país como uma república socialista, dando superpoderes a Chávez. Entre outros, o de decretar estado de emergência, no qual os direitos individuais estariam suspensos, e a possibilidade de reeleições indefinidas.

São dois os mais importantes estudos acadêmicos que buscam definir o que é uma democracia. O primeiro está no livro “Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World”, 1950-1990, de autoria de Adam Przeworski, Michael E. Alvarez, José Antonio Cheibub e Fernando Limongi.

Nesta obra, que Octavio Amorim Neto considera “impressionante pelo rigor da análise estatística empreendida”, os autores propõem uma classificação minimalista de regimes políticos: só existiriam democracias e ditaduras.

O segundo estudo está no ar tigo de Mainwaring, Brinks e Pérez-Liñán, “Classificando Regimes Políticos na América Latina, 19451999”. Os autores dividem os sistemas políticos em democracia, semidemocracia e autoritarismo.

De acordo com o primeiro estudo, o cientista político Fernando Limongi, da USP, um dos autores, define como democrático o regime venezuelano, “ainda que a classificação dependa de estar atento a detalhes que talvez estejam me escapando no momento. Crucial é saber se Chávez aceitará a sua derrota. Isto é, uma democracia é definida como aquele regime em que detentores são derrotados eleitoralmente, e, em função desta derrota, passam o poder aos vencedores. Ainda não sabemos se isto vai ou não ocorrer na Venezuela”.

Pelos critérios do segundo estudo, tanto o cientista político Octavio Amorim Neto quanto um de seus autores, o professor da Universidade de Pittisburgh, nos Estados Unidos, Aníbal Perez-Linan, consideram a Venezuela de Chávez um regime semidemocrático.

Na definição de Octavio Amorim Neto, o hiperpresidencialismo na Rússia, apoiado nos petrodólares, gerou um regime autoritário, ao passo que o mesmo sistema de governo na Venezuela, também munido de petrodólares, produz, por enquanto, um regime semidemocrático em função da maior robustez da sociedade civil e das instituições venezuelanas.

(Continua amanhã)

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