O primeiro golpe foi dado no dia 24. Depois de mais de um ano sem que conseguissem votar um único artigo do projeto feito por Evo Morales, seus seguidores transferiram a sede da Assembléia Constituinte, em Sucre, para um quartel e, na calada da noite, aprovaram todo o texto - acrescido de dispositivo que permitia a reeleição indefinida do presidente -, obviamente sem a participação da oposição. O texto foi aprovado por 138 dos 255 constituintes, violando, assim, a legislação que condicionava a aprovação ao apoio de dois terços dos deputados.
No sábado, a Constituinte foi transferida para uma universidade em Oruro, cidade controlada pelos partidários de Morales. Lá se reuniram 164 deputados que tiveram o cuidado formal - mas nem por isso menos golpista - de mudar as regras do jogo, para permitir que a constituição fosse aprovada por dois terços dos presentes, e não de todo o corpo parlamentar, como determinava a lei que convocou a Assembléia Constituinte. A maior parte dos deputados da oposição, que esperavam que a sessão fosse instalada em Cochabamba, não chegou a tempo em Oruro. Os poucos que compareceram decidiram não participar da pantomima, depois de deixar claro à Assembléia que o que lá se passava era ilegal.
Impedidos de deixar o recinto por uma multidão que cercava o prédio - e de vez em quando explodia cargas de dinamite para estimular o ânimo reformista dos constituintes -, em 16 horas de trabalho os deputados aprovaram o texto da nova constituição, que será submetida a referendo. Neste segundo turno, deveriam ser votados todos os mais de 400 artigos da constituição, um por um. Mas todos tinham pressa, não havia oposição a exigir o respeito à lei, e votou-se tudo em bloco, por capítulos. Muitos dos deputados não dispunham de cópia do projeto, para acompanhar o que estava sendo votado.
Explica-se a pressa de Evo Morales e os seus expedientes golpistas. A Assembléia tinha até o dia 15 deste mês para cumprir o objetivo de sua convocação. Passou, no entanto, mais de um ano perdida em discussões sobre procedimentos, sem que a maioria liderada pelo Movimento ao Socialismo conseguisse vencer a obstrução da minoria. E o que a minoria queria não era nada extraordinário: respeito à propriedade privada e à livre empresa e autonomia política, administrativa e fiscal aos nove departamentos (Estados), que até o ano passado tinham seus governadores nomeados em La Paz.
Os governadores de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Cochabamba, que se opõem a Evo, anunciaram que não acatarão a nova constituição e já conclamam a população à desobediência civil. Os governadores de La Paz e de Chuquisaca não integram o bloco de oposição, mas não apóiam Evo Morales, que só conta com os departamentos de Oruro e Potosí. O Comitê Cívico de Santa Cruz, onde é forte e antigo um movimento separatista, pretende antecipar um referendo para a aprovação unilateral do estatuto de autonomia do departamento.
Evo Morales foi eleito em 2005, por ampla maioria, com a promessa de promover a inclusão política e social das comunidades indígenas na vida nacional. Mas revelou-se um fiel discípulo do caudilho venezuelano Hugo Chávez - cuja ascendência sobre Morales é total, a ponto de fornecer-lhe guarda-costas - e adotou integralmente o "bolivarianismo". A diferença é que, na Venezuela, a oposição a Chávez se dissolveu após a greve de 2002 e só voltou a aparecer agora, no referendo que rejeitou a constituição liberticida. Na Bolívia, a oposição sempre esteve estruturada.
Com o golpe deste final de semana, Evo Morales ampliou as divisões do país e aumentou as possibilidades de que haja uma reação violenta aos seus desmandos.