Os dekasseguis seguem dizendo que voltarão
para o Brasil. Mas boa parte deles dá sinais de
que vai ficar definitivamente no Japão
Fotos Paulo Vitale |
[A família Oto] Os pioneiros tinham um padrão de vida bem diferente |
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Empurrado pela falta de perspectivas e por um presente sombrio, um grupo de pessoas decide abandonar o seu país rumo a uma terra distante, que promete prosperidade e bem-aventurança aos que tiverem coragem, perseverança e disposição para pegar no pesado. O objetivo dos viajantes é um só: trabalhar duro, economizar ao máximo e voltar para casa, de bolsos bem cheios, o mais rápido possível. O passar do tempo, as circunstâncias históricas e o curso da vida, no entanto, fazem com que essa volta seja sucessivamente adiada, até acabar definitivamente esquecida. E assim, para os filhos dos filhos desses viajantes, a terra distante passa a ser aquela que seus antepassados deixaram um dia. Até há pouco tempo, a trajetória dos dekasseguis brasileiros que foram para o Japão e a dos imigrantes japoneses que vieram para o Brasil guardavam uma única diferença: ao contrário dos japoneses, que décadas depois da chegada ao país estavam definitivamente estabelecidos, os brasileiros que foram para o Japão continuavam se considerando – e sendo considerados – residentes temporários em terra estrangeira. Para especialistas, essa diferença acabou. Autor de um estudo sobre a comunidade brasileira no Japão, Pedro Corrêa Costa, vice-cônsul do Consulado do Brasil em Tóquio, afirma que os sinais de que os brasileiros estão se fixando definitivamente por lá são tão evidentes que eles não podem ser chamados mais de dekasseguis – palavra que quer dizer "trabalhadores temporários". "Já são emigrantes", afirma Costa.
Não que os brasileiros tenham isso muito claro: em todas as pesquisas em que se pergunta se pretendem voltar para o Brasil, a resposta é, quase sempre, sim. Hoje, no entanto, poucos se arriscam a dizer quando se dará essa volta, como ocorria até a década passada. Atualmente, a resposta mais comum é: "Um dia". Os números, porém, indicam que a situação dos brasileiros no Japão está na contramão do desejo que a maioria professa: a paridade entre homens e mulheres na comunidade tem aumentado, assim como o número de crianças e idosos – indicativos demográficos clássicos de tendência de assentamento. Além disso, aumentou exponencialmente o número de brasileiros com visto permanente japonês: eram 9.000 há sete anos, contra 63.000 hoje. Ao contrário do visto temporário, o permanente não exige renovação periódica e não estabelece limite máximo de permanência no país.
[DE OPERÁRIO A PATRÃO] Uma parcela crescente de brasileiros começa a deixar as fábricas para tentar o próprio negócio. Foi o que fez Olga Maeda. Ela abriu um restaurante de comida brasileira. Abaixo, uma loja de produtos importados do Brasil e de outros países da América Latina |
Os primeiros dekasseguis brasileiros chegaram ao Japão há vinte anos. Nesse período, muita coisa mudou, a começar pelo seu estilo de vida: os homens sozinhos, de hábitos espartanos, que não faziam outra coisa senão trabalhar e poupar, deram lugar a famílias com pais, filhos – e, claro, desejos de consumo. O casal de dekasseguis Alexandre Seiti Oto, de 28 anos, e Rosemeire da Rocha Oto, de 25, moram há cinco anos em Oizumi (localizada na província de Gunma, a cidade tem a maior concentração de brasileiros do arquipélago). Com duas filhas pequenas, aluga DVDs quase todos os dias, leva as crianças para almoçar fora nos fins de semana e já viajou com elas duas vezes para a Disney World de Tóquio. Seriam luxos impensáveis para os operários brasileiros que lá trabalharam nos anos 80 – como o tio de Oto, por exemplo. "Ele ficou quatro anos aqui e juntou um dinheirão, mas ia de casa para o trabalho e só comia rámen (macarrão servido em caldo de legumes ou carne)", conta o rapaz.
A vida dos pioneiros resumia-se a trabalho pesado e muita, muita solidão. Osamu Arakaki, de 42 anos, dono de uma loja de produtos brasileiros também em Oizumi, chegou ao Japão em 1986 para trabalhar em uma fábrica de botões. Por diversas vezes, chegou a fazer turnos de 24 horas seguidas. Arakaki conta que economizava cada iene ganho e só não se importava em abrir a carteira uma vez por mês: quando comprava cartões para telefonar para a família no Brasil. Era outro sacrifício, já que na pequena cidade em que ele trabalhava, a central telefônica fechava às 18h30 no sábado, antes de Arakaki sair da fábrica. "Eu pegava um trem e viajava duas horas até Tóquio só para ligar para os meus pais. Dormia num hotelzinho barato e voltava no dia seguinte. A saudade era muita", lembra.
[A MAIS BRASILEIRA DAS CIDADES] Em Oizumi, na província de Gunma, quase 15% dos 42 000 habitantes são brasileiros. Nas lojas especializadas, até paçoca dá para comprar |
"Os dekasseguis de hoje continuam trabalhando duro, mas não só se acostumaram a gastar com diversão como já se arriscam a fazer despesas bem mais elevadas", afirma Kiyoharu Miike, vice-presidente da Associação Brasileira de Dekasseguis, no Paraná. Atualmente, mais da metade dos adultos brasileiros no Japão tem automóvel, e uma parcela pequena, mas crescente, da comunidade tem casa própria (3%, o triplo de 1996). "A segurança e a estabilidade financeira que o Japão oferece são os principais motivos da permanência dos dekasseguis aqui", afirma o sociólogo Angelo Ishi, professor da Universidade Musashi no Japão.
Dos 300.000 brasileiros e descendentes que moram no Japão, quase 15% foram para lá em 1990. Naquele ano, a fila para obtenção de visto japonês começava a se formar em frente ao prédio do Consulado de São Paulo às 3 da manhã e, às 10, dava voltas no quarteirão. Estimulando essa saída em massa, estava, do lado do Japão, a nova lei de imigração que estendia a permissão de trabalho naquele país para filhos e netos de cidadãos japoneses. Enquanto isso, o Brasil vivia o Plano Collor, que, ao tungar poupanças e fazer ruir negócios, teve, para muitos nipo-brasileiros, o efeito de um pontapé. Assim, solicitado de um lado e empurrado de outro, um punhado de descendentes de japoneses se mandou para o outro lado do mundo. De 1989 para 1990, o número de brasileiros no Japão aumentou 288%.
Hoje, é certo que esse ciclo se aproxima do fim. O motivo principal é que, em breve, não haverá mais no Brasil descendentes de japoneses aptos a trabalhar como operários no Japão. Boa parte dos nisseis e sanseis – filhos e netos de japoneses – não é mais tão jovem assim para decidir recomeçar a vida tão longe. Já os yonseis, descendentes de quarta geração, estão legalmente impedidos de substituir os atuais dekasseguis (que também vão envelhecer e se aposentar), porque a lei japonesa concede visto de trabalho apenas a descendentes de japoneses até a terceira geração. Por causa disso, embora a população de brasileiros no Japão continue aumentando, em breve ela atingirá o seu teto e se estabilizará. Uma parte ficará, então, definitivamente no arquipélago. Lá, produzirá descendentes que chamarão o Japão de terra natal – e, para eles, o Brasil será aquele país distante, onde tudo começou.
VIDA DE DEKASSEGUI Alexandre e Rosemeire Oto trabalham há cinco anos como dekasseguis em fábricas de Oizumi. O casal tem duas filhas, Thaís e Laivy, e mora em um apartamento pertencente à prefeitura, pelo qual paga o equivalente a 400 dólares por mês. Eis sua rotina:
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Ser brasileiro no Japão é...
• • • Alugar um apartamento de 20 metros quadrados e ter uma TV de 42 polegadas na sala • • • Saber de cor todas as músicas de Ivete Sangalo • • • Dizer que adora samba, feijoada e caipirinha – e adorar mesmo, ainda que no Brasil nunca tenha dado importância a nenhuma das três coisas • • • Fazer trocadilhos em português usando expressões japonesas (ex.: "gata-gata", que quer dizer "gasto", "roto", produz a seguinte frase: "Quando casei, minha mulher era uma gata. Agora, está gata-gata") • • • Fazer churrasco todo fim de semana, chamar os vizinhos e colocar um pagode bem alto (alternado com Ivete Sangalo) • • • Confundir-se na hora de separar o lixo para reciclagem • • • Ter um carrão último modelo da Toyota ou da Mazda (comprado usado) • • • Detestar fazer taissô (exercício de alongamento feito por operários japoneses nos pátios das fábricas antes do início do expediente) • • • Sonhar em voltar um dia para o Brasil |
O mundo à parte das crianças Pais que não falam japonês e dificuldades
T. S, de 8 anos, nasceu no Brasil e aos 3 foi para o Japão com a família. Seu pai é sansei e sua mãe, brasileira sem ascendência oriental – ambos trabalham em fábricas como dekassegui e nenhum dos dois fala japonês. Quanto T. entrou na escola, chorava todos os dias porque não entendia o que os professores e colegas diziam. Os pais pensaram em colocá-la em uma escola brasileira, mas desistiram diante do preço da mensalidade – cerca de 600 dólares por mês. T. continuou na escola japonesa e, aos poucos, parou de chorar. Mas até hoje não gosta de lá, tem dificuldades de aprendizado e, no recreio, fica sempre num canto, isolada das crianças japonesas. Seus pais dizem que a culpa pelo baixo rendimento da filha é da escola, que não dá atenção aos brasileiros. A escola culpa os pais – que não entendem japonês e por isso não ajudam os filhos nas lições. Para a professora Eunice Ishikawa, da Universidade Shizuoka de Arte e Cultura, os dois lados têm razão: "O governo ignora as necessidades específicas das crianças brasileiras e seus pais, muitas vezes por culpa de uma mentalidade operária, não dão a devida importância ao estudo dos filhos", diz. O resultado é que crianças como T., filhas de dekasseguis crescidas ou nascidas no Japão, dificilmente conseguirão ir muito longe na carreira escolar. Hoje, em todo o Japão, não chega a cinqüenta o número de dekasseguis ou filhos de dekasseguis que conseguiram terminar o colegial e estão fazendo algum curso técnico ou cursando faculdade. Pior que isso, pesquisas indicam que quase um terço dos brasileiros em idade escolar residente no Japão está fora da escola – muitos, provavelmente, pelo mesmo motivo que faz T. não gostar de estudar: a dificuldade em aprender a língua. "A soma desses dados indica que, infelizmente, a segunda geração de brasileiros no Japão ainda será mão-de-obra não qualificada", diz a professora Eunice. "Para que essa situação mude, é preciso que os pais brasileiros invistam na formação dos filhos e que tanto eles quanto o governo do Japão se convençam de que essas crianças já são japonesas."
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