Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Dora Kramer - Devagar com a louça



O Estado de S. Paulo
14/12/2007

Por mais que tenha entrado na sessão de quarta-feira à noite no Senado sabendo que a situação era difícil, o governo não esperava perder a parada da CPMF. Tanto foi surpreendido que tentou até o último instante: mandou toda sua tropa à tribuna, orientada para carregar na veemência - de cunho emocional por vezes patético - e, num lance teatral, apresentou na 25ª hora uma proposta que teve quatro anos para apresentar.

O fim da vigência da CPMF no dia 31 de dezembro era um fato desde a última renovação, em 2003. O único assunto na pauta do Congresso de interesse genuíno do Palácio do Planalto era esse.

No início do ano, o presidente Luiz Inácio da Silva, reeleito, montou uma coalizão de todos os partidos existentes na praça congressual, descontados apenas o PSDB, Democratas e PPS. É de se imaginar que pretendesse tal maioria para algo mais útil que exibi-la como um troféu na prateleira da adesão nacional à figura presidencial.

Sabia das dificuldades no Senado, viu o Democratas trilhar o caminho da oposição intransigente, recebeu sinais de que o PSDB precisava de uma bandeira para se afirmar, ouviu senadores de partidos aliados anunciando o voto contra, recebeu alertas de ministros e do presidente em exercício do Senado, Tião Viana, teve acesso às pesquisas mostrando a rejeição da classe média ao imposto, não pode alegar desconhecimento sobre o cenário adverso. No entanto, preferiu confiar no seu taco.

Fazer as coisas a seu modo: lidar com aliados na base da cooptação mediante favores e tratar os adversários ora com ameaças e desaforos, ora com afagos de franqueza questionável, ora com atos de constrangimento explícito, a fim de acentuar suas divergências internas.

Às vezes dá certo, como de resto tem dado. Mas, é como disse o então ministro Luis Carlos Santos ao perceber que as escaramuças entre PSDB e PFL no governo Fernando Henrique poderiam ser um prenúncio da derrota tucana nas eleições de 2002: “As coisas só dão certo até começarem a dar errado” ou “não se pode fazer tudo errado e querer que no fim sempre dê certo”.

Uma hora a falta de apreço por honrar a palavra empenhada, a soberba, a suposição de que a aliança com os mais ricos e os mais pobres é suficiente para dar conta do recado, a convicção de que a desmoralização do Congresso o faz refém de uma posição subalterna, uma hora a conta dessa conjunção de equívocos seria apresentada.

Ocorreu justamente no momento em que o governo jogava sua mais preciosa peça, perdida por excesso de autoconfiança e pela inesperada unidade da oposição, sustentada em três pilares: a coragem quase suicida do líder do PSDB, Arthur Virgílio, o tirocínio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a firmeza do líder do Democratas, José Agripino Maia.

Não fossem eles, com todos os seus erros, o governo talvez hoje estivesse comemorando a renovação da CPMF, com a oposição desarticulada de vez, os dissidentes dos partidos governistas triturados, o Congresso irremediavelmente de joelhos e o presidente Lula, convicto do acerto de seus métodos, totalmente desprovido de limites.

A respeito do baque nas contas, o governo certamente dará um jeito. Tem folga de caixa e já estava mais que na hora de mostrar ao País capacidade de se desincumbir da tarefa delegada nas urnas não só na bonança, mas também na tempestade.

A prova dos nove, a escolha crucial estará na forma de reagir ante a derrota política. Se souber compreender onde errou e onde precisa se corrigir, sai dessa com classe. E, quem sabe, até com uma volta por cima mais à frente.

O presidente Lula tem duas opções. A pior é ceder ao temperamento, cujo traço de autoritarismo e ressentimento não lhe tem sido bom conselheiro.

A melhor é render-se à razão, que lhe foi boa madrinha nas duas vitórias eleitorais.

No terreno da racionalidade, poderá agir de duas maneiras: ou reapresenta a proposta de renovação da CPMF no ano que vem, negociando como gente grande, honrando compromisso, dividindo os ganhos sem tentar recolher só para si os benefícios, ou dá um passo mais ousado, deixando tudo como está e esquece a CPMF.

Nesta hipótese ainda poderá incluir entre as credenciais apresentadas à História o fato de ter conseguido o feito, juntando este àquele da antecipação do pagamento ao FMI.

Da mesma forma como ninguém lhe perguntou nem ele se sentiu obrigado a falar sobre o prejuízo da conta paga com o dólar em quase o dobro do valor de hoje, com sorte, depois de duas dezenas de discursos se apropriando do fim da CPMF, em seis meses restarão poucos a se lembrar de que o ato resultou de uma derrota.

Didática, diga-se, do ponto de vista democrático. Mostrou que o governo pode muito, mas não pode tudo e que não dispõe, no Senado, do quórum qualificado para alterações constitucionais. Por isso, no caso de o PT ter algum plano de mudança institucional, recebeu na madrugada de quarta para quinta-feira o sinal de que convém ir devagar com a louça.

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